31 outubro 2025

"De Nápoles a Nova York", delícia de filme que parece sessão da tarde, mas não é

Obra é uma das produções em exibição online de graça, até o dia 29 de novembro, durante o Festival
do Cinema Italiano (Fotos: Divulgação)
 
 

Mirtes Helena Scalioni

 
Tem aventura? Tem. Tem ternura e alguma ingenuidade? Tem. Tem demonstrações de amizade que sempre superam as vilanias? Tem. E tem também, muitas vezes, uma sensação de que o óbvio vai acontecer e ele realmente acontece. Até poderia ser, mas não se trata de uma Sessão da Tarde. 

"De Nápoles a Nova York" ("Napoli - New York") tem roteiro original de ninguém mais, ninguém menos do que Federico Fellini e Tullio Pinelli e - pasmem - foi escrito em 1948. O filme é uma das 12 obras inéditas das 24 em exibição online e em mais de 100 salas de cinema do Brasil durante a 20ª edição do Festival do Cinema Italiano. 

Todas as produções do festival podem ser assistidas gratuitamente até o dia 29 de novembro no Cine Santa Tereza, no Cine Lounge da Casa Fiat de Cultura ou no site do festival - https://festivalcinemaitaliano.com.


No final da Segunda Grande Guerra, quando Nápoles estava quase que totalmente destruída, grande parte da população vagava pelas ruas se virando atrás de trabalho, dinheiro e comida. 

Por uma dessas fatalidades que só acontecem em histórias como essa, a menina Celestina, de 10 anos, se vê sozinha ao visitar um hospital e descobrir que seu único vínculo, uma velha tia que cuidava dela, acabara de morrer. 

Abandonada à própria sorte, a pequena órfã vai procurar seu amigo Carmine, de 13 anos, com a certeza de ser acolhida por ele, um garoto órfão e também abandonado, que vive pelas ruas. 

Os dois formam uma dupla esperta, ganhando a vida com pequenos golpes e jogos de baralho, numa cumplicidade óbvia - e comovente - só vista em filmes da Sessão da Tarde. 


Entre uma e outra falcatrua, o espectador fica sabendo que Celestina tem uma irmã, Agnese, que se mudou há muito para Nova York e que deixou de dar notícias há tempos. Seu sonho, claro, é ir atrás da irmã e, na sua cabeça ingênua e infantil, conquistar a América como ela. 

A forma como as duas crianças acabam chegando aos States é bem inverossímil, possível talvez só em filmes da Sessão da Tarde. Ainda assim, é bastante provável que, a partir daí, o público se pegue torcendo pelas duas crianças e se enternecendo com a amizade e inteligência dos dois. 


Junte-se a isso, a inevitável empatia e compaixão por exilados e imigrantes, nem sempre bem-vindos nos países para onde se mudam quando obrigados a deixar a própria terra. 

Nesse ponto, roteiro e direção de "De Nápoles a New York" caprichou nas demonstrações de preconceito contra os italianos que aportaram nos Estados Unidos naquela época com a intenção de fazer a América. 

Para ajudar a derreter os corações, a trilha sonora colabora, juntando sucessos que vão da inspirada "Smile", de Charlie Chaplin, a "Be My Baby", sucesso de 1963 com o grupo Ronettes e tocada até hoje. 

Parênteses para contar que o filme ganhou o Globo de Ouro Italiano de 2025 como Melhor Trilha Sonora. Além de conquistar o prêmio David di Donatello 2025 de Melhores Efeitos Visuais.


As atuações também ajudam. Os pequenos Antônio Guerra e Dea Lanzaro arrasam e conquistam como Carmine e Celestina. Os demais atores, todos gravitando em torno da dupla, cumprem muito bem seus papéis. 

Estão lá Pierfrancesco Favino, como o inspetor do navio, Domenico Garofalo; Anna Ammirati, como Anna Garofalo; Anna Lucia Pierro, como a irmã Agnese; e Omar Benson Miller, como o inimigo-amigo George; Tomas Arana, como Capitano; e Antonio Catania, como Joe Agrillo.


Talvez um detalhe não permita que "De Nápoles a New York" seja um verdadeiro filme da Sessão da Tarde: o final, bastante criativo e surpreendente, depois de muitas obviedades. 

Além do mais, depois de tanta aventura e boas intenções, é possível até mesmo se questionar: quem disse que é proibido se deixar envolver por um filminho assim? Pode sim ser válido - e até necessário - em algum momento da vida. Basta se desarmar. 


Ficha técnica:
Direção: Gabriele Salvatores
Roteiro original: Federico Fellini e Tullio Pinelli
Produção: Paco Cinematografica, Rai Cinema
Exibição: gratuita no Cine Santa Tereza, Cine Lounge da Casa Fiat de Cultura e online no link https://festivalcinemaitaliano.com
Duração: 2h04
Classificação: 14 anos
País: Itália
Gêneros: drama, comédia

30 outubro 2025

"A Memória do Cheiro das Coisas" tenta ser poético enquanto aborda velhice, perdão e (o próprio) racismo

Longa português dirigido por António Ferreira tem José Martins e Mina Andala entregando ótimas interpretações (Fotos: Bretz Filmes)
 
 

Eduardo Jr.

 
A velhice é sempre digna de nossa piedade? O passado, por ser passado, merece perdão? Essas são questões que podem surgir do contato com o longa português “A Memória do Cheiro das Coisas”, que estreia nesta quinta-feira, no Centro Cultural Unimed-BH Minas.

Dirigido por António Ferreira, coproduzido pela brasileira Muiraquitã Filmes e distribuído pela Bretz Flmes, o longa tenta aplicar uma aura poética ao abordar velhice, passado, preconceito e memória. 


O ator José Martins dá vida ao Sr. Arménio, um octogenário que é levado pelo filho para morar em um lar de idosos. A você, que me lê e pode sentir pena do protagonista deixado no asilo, já aviso: dificilmente você conseguirá gostar dele. 

Nos primeiros segundos Arménio já exibe seu lado rude. E daí em diante o espectador vai conhecendo o passado e a personalidade daquele homem, ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, em Angola. Mas a guerra continua com ele, na memória e nos cheiros que remetem a experiências do passado. 


Ele também carrega consigo o preconceito racial, que fica evidente quando seu cuidador no asilo deixa o trabalho e no lugar dele chega Hermínia, mulher negra a quem ele assedia e ofende. A personagem, vivida por Mina Andala, tem a chance de desconectar Arménio das ideias racistas. A direção, no entanto, revela que não sabe reconhecer e representar igualdade. 

No filme, a cuidadora até se defende das violências. Chega a dar pistas de que será o elemento capaz de oferecer alguma dignidade a quem atacou a dignidade dos africanos. Mas seu discurso é o de que, embora negra, é cidadã portuguesa e que seu pai também lutou na guerra. Parece precisar convencer que é uma pessoa digna de ser aceita pelo homem branco.  


Já em outros aspectos, como a tentativa de expressar uma velhice que parece acorrentar Arménio à margem do mundo, a obra obtém resultados melhores. Se o tempo passou, dificultando alguns atos do cotidiano e exigindo dele paciência, também vai cobrar isso do espectador, em cenas lentas, em que a câmera mal se move. 

Nos corredores apertados e ora escuros do lar para idosos é possível experimentar uma claustrofobia. A sensação é acentuada pela ausência de janelas abertas. Para ver uma passeata ou o cachorro que gosta o velho ex-combatente de guerra não pode fazer mais do que lançar seu olhar através da vidraça que o separa da vida pulsante. 


Resta a Arménio enfrentar seus fantasmas do passado. E ao espectador, se incomodar com a postura da direção, que aplica em um relato do passado do idoso a tentativa de fazer dele uma vítima, mesmo ele já tendo confessado os horrores praticados em nome de seu país. 

Observando mais atentamente as camadas do roteiro, a velhice pintada com as tintas do abandono, do constrangimento e do trauma parece uma merecida vingança. 

Em resumo, esta pode ser considerada uma obra de naturalizar preconceitos que se apresenta vestida de véu poético. Como aquele já conhecido patriotismo, que acredita serem válidas as piores das vilanias.


Ficha técnica:
Direção:
António Ferreira
Produção: Persona Non Grata Pictures, coprodução da brasileira Muiraquitã Filmes
Distribuição: Bretz Flmes
Exibição: Centro Cultural Unimed-BH Minas - sala 2
Duração: 1h40
Classificação: 14 anos
País: Portugal, Brasil
Gênero: drama