06 dezembro 2025

"A Natureza das Coisas Invisíveis": a complexidade da existência humana pelo olhar de duas crianças

Longa aborda a importância de permitir que crianças participem das conversas sobre a finitude da vida
(Fotos: Vitrine Filmes)
 
 

Patrícia Cassese

 
Para usar uma expressão em voga no momento, há tantas camadas no longa-metragem "A Natureza das Coisas Invisíveis", em cartaz no Cine Una Belas Artes, que certamente o processo de decupagem na recepção do conteúdo vai acompanhar o público por um bom tempo após o fim da sessão. 

De pronto, é preciso dizer que trata-se de um filme que aborda um tema muito, muito intrincado: a finitude da vida. Não bastasse, o faz principalmente pelo olhar de duas crianças, ambas com dez anos de idade. São elas: Glória (Laura Brandão) e Sofia (Serena), ambas excelentes, espontâneas e visivelmente comprometidas e entregues. 

Mas, que fique claro, o primeiro longa-metragem de Rafaela Camelo trata a questão com toda a delicadeza possível nesse árido caminho, de modo que se algumas lágrimas teimarem em escorrer pelo rosto, provavelmente serão mais por outro tipo de emoção que a relacionada à tristeza.


A cena inicial desse que é descrito como um coming of age* nos leva a um banheiro de uma escola, com seus tradicionais rabiscos na parede. Discretamente, pela fresta de uma porta, uma garota - Glória - aguarda as demais saírem para, só então, sair da cabine. 

Já no frame seguinte, um indicativo de que o filme também transitará por outra esfera que não apenas a da realidade, do crível - mas é melhor não estragar a surpresa. Se frequentar a escola não faz o cotidiano de Glória ser diferente de boa parte das crianças do país, o outro turno do dia, sim. 

Isso pelo fato de sua mãe, a enfermeira Antônia (Larissa Mauro), não tendo com quem deixar a menina, acaba costumeiramente arrastando-a para o seu trabalho, em um hospital.

Uma das cenas mostra que a presença de Glória já é familiar aos pacientes, bastante idosos, que a recebem como um raio de sol que adentra a penumbra do cotidiano hospitalar. A menina também transita com naturalidade por outros ambientes da instituição, como um quarto de pertences "esquecidos" por lá. 


No entanto, a rotina daquele dia específico é quebrada com a chegada de outra criança, Sofia, que adentra o local praticamente sem fôlego, trazendo consigo a bisavó, Francisca (Aline Marta Maia), que sofreu uma queda em casa.

O acidente, na verdade, é uma intercorrência em meio a uma série de problemas que a idosa vem enfrentando nos últimos tempos, mediante o avanço da demência que a assola. Neste episódio, um ponto que chama atenção é o fato de, no momento da queda, Bisa estar em casa apenas com uma criança, sendo que seu estado demandaria, claro, a presença de um adulto. 

Eis que a mãe da menina, Simone (Camila Márdila, sempre excelente), entra em cena e ficamos sabendo que, assim como Antônia, ela também é uma mãe solo. A necessidade imperiosa de trabalhar a obriga a deixar a filha sozinha com sua avó - não por outro motivo, de cara demonstra receio de perder a guarda da criança por conta do acidente.

Além da coincidência da idade e da configuração familiar, as duas meninas também vêm de experiências marcantes. Glória é uma garota transplantada (recebeu um coração). 


Já Sofia, uma criança trans - e palmas para a diretora por tratar esse tema com extrema sensibilidade e naturalidade, sem transformá-lo em um ponto crucial da trama, que, na verdade, enverga, como já dito, pelos mistérios que rondam a nossa finitude. 

De todo modo, para interpretar Sofia, Rafaela Camelo fez questão de escolher uma atriz que tivesse lugar de fala, ou seja, uma criança trans - o que já é um avanço e tanto. 

Em meio a tantos pontos comuns, uma característica que diferencia as duas é justamente a visão da morte. Acostumada ao ambiente hospitalar, Sofia vê a partida dos pacientes com uma espécie de "tristeza conformada". 


Assim, mexer nos tais pertences esquecidos por lá, vestir roupas de quem partiu, é um ato que vê com extrema naturalidade, ao contrário de Sofia. Como a garota chegou ao hospital com a blusa manchada de sangue, Glória toma a iniciativa de mostrar a ela uma blusa de criança por lá disponível.  

O que para ela é uma solução óbvia, assusta a outra menina, que acredita em energias emanadas por aqueles que já partiram. Fato é que não só as duas estabelecem amizade, como as respectivas mães também. E, quando Bisa tem alta, Antônia se oferece para acompanhar sua recuperação no sítio para o qual a idosa será levada.

Não, não é meramente um gesto de altruísmo, posto que Simone nem teria como pagá-la. É que a enfermeira entende ser essa uma boa saída para a filha não passar o período fora da escola num ambiente no qual a luta pela vida é muitas vezes atravessada pela derrota. 

E é nesse ponto que o "A Natureza das Coisas Invisíveis" ganha uma espécie de ponto de virada, aliás, pontuada pela voz de Milton Nascimento, entoando "Fazenda". 


Assim, do ambiente hospitalar "frio" e asséptico, marcado por sondas, acessos e medidores, a exuberância da vida no campo irrompe. E o vento que balança as folhas é um indicativo emblemático. O verde ocupa a tela, bem como a fauna costumeira da vida campestre, como patinhos e outros animais. 

No material de divulgação do filme, a diretora diz que a divisão do longa em duas partes seria "uma metáfora estrutural". "Como se, naquele ponto, o filme da forma que vinha sendo apresentado tivesse que morrer para outro se formar”. 

Na casa propriamente dita, uma edificação singela como tantas dispersas interior afora, a fé marca forte presença por meio dos santos reunidos num altar, ao lado de figuras como a do Preto Velho, estampando o sincretismo religioso que pauta o país.


A presença das mulheres da redondeza exalta a importância da sororidade, bem como a cumplicidade orgânica que se estabelece entre elas, também típica do interior do Brasil - no caso, em Goiás. Na vivência do sítio, o aspecto sobrenatural se acentua, seja por meio das diversas práticas advindas de crenças populares quanto pelos ditames religiosos. 

Em uma das cenas, a expressão no rosto de Antônia deixa evidente seu ceticismo quando a alguns expedientes que por ali são culturalmente introjetados. No entanto, ela se deixa levar, seja por respeito ou pelo espírito de "pagar para ver". Ou por ambos. Afinal, que se arvoraria a, em situações difíceis, não tentar recorrer ao que se apresenta?

Ao fim e ao cabo, nos 90 minutos de percurso da empreitada, Rafaela Camelo mostra que sua estreia no formato longa se deu com o pé direito, para usar uma expressão também popular no país. 


Na beleza do intangível, no âmbito do imponderado, nas dúvidas que assolam o percurso do ser humano na Terra, e mesmo com uma pitada do fantástico, "A Natureza das Coisas Invisíveis" enreda o espectador com tal força que o acender das luzes da sala de cinema, após a cena final, ao som de Fernando Mendes, vai flagrar muita gente com os olhos marejados. Como dito no inicinho desse texto.

*Coming of age é o nome que se dá a filmes que acompanham a transição da infância para a adolescência, por vezes também para a vida adulta.

Curiosidade

- Estudos recentes indicam que no Brasil cerca de 1,3 milhão de crianças já enfrentaram a perda de pelo menos um dos pais ou de um morador do domicílio, o que reforça a magnitude desse impacto.

- Essas circunstâncias aumentam os riscos de ansiedade, depressão, dificuldades escolares e outros desfechos negativos de longo prazo. 


Ficha técnica:
Direção e Roteiro:
Rafaela Camelo
Produção: Moveo Films
Distribuição: Vitrine Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes
Duração: 1h30
Classificação: 12 anos
Países: Brasil e Chile
Gênero: drama

05 dezembro 2025

“Cyclone” é obra crescente sobre talentosa dramaturga esquecida na história do Brasil

Longa resgata a história de Daisy Castro, interpretada por Luiza Mariani, que enfrentou vários obstáculos machistas para estudar teatro em 1919 (Fotos: Muiraquitã Filmes)
 
 

Eduardo Jr.

 
“O senhor já foi em alguma peça escrita por uma mulher?” A pergunta lançada no meio do filme e o silêncio constrangido dado como resposta poderiam ser apresentados logo no início do filme “Cyclone”, como dica do que está por vir. O longa está em cartaz no Cine Una Belas Artes.

O longa, dirigido por Flávia Castro, produzido pela Muiraquitã Filmes, pela Mar Filmes e distribuído pela Bretz Filmes, resgata a história real da dramaturga Maria de Lourdes Castro Pontes, que enfrentou o obstáculo de ser mulher na busca por uma viagem a Paris para estudar teatro. 


O início, sem cor, parece identificar o mundo masculino. A dramaturga Daisy Castro, que se intitula Cyclone (Luiza Mariani), tenta apresentar seu trabalho para alguns senhores. Mas essa é uma daquelas conversas onde o que a mulher tem a dizer não interessa aos homens. 

O local onde ela tem (tem?) reconhecimento é na encenação de uma trupe teatral, dirigida por Heitor Gamba (Eduardo Moscovis), com quem ela dorme. Além de ter o corpo de Cyclone, ele detém o poder de incluir ou não o nome dela nos créditos da peça, que só existe graças ao trabalho dela. 

A direção ganha um ponto extra por conta de fina provocação: a peça a ser encenada no filme é “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto. Texto que satiriza questões como preconceito e hipocrisia em um país fictício. 


Na coxia, a câmera espreita tudo, como um dos participantes alcoolizados naquele ambiente, ora com foco, ora desfocada ao capturar detalhes. Sem planos abertos, parece querer simbolizar um mundo fechado. 

Para entender algumas falas, o espectador precisa estar bem atento. O som, que começa inicia em volume mais elevado, perde potência ao acompanhar o cotidiano, os deslocamentos, o trabalho de Daisy como tipógrafa. 

Ali, ela e a prima Lia (Luciana Paes) conversam sobre o universo feminino, a relação com o mundo dos homens. E isso alimenta a escrita de Cyclone. Enquanto ela cria, a música guia o emocional do público, tentando dar esperança à luta daquela mulher. 


Até então meio morno, o longa começa a respirar mais forte quando a jovem recebe a confirmação de que conquistou uma bolsa para estudar teatro em Paris, onde poderá deixar de ser Daisy durante o dia e ser somente Cyclone em tempo integral. 

Mas ela é mulher. E isso, na São Paulo de 1919, significa precisar ter seu nome gravado no programa de uma peça como dramaturga, ter uma autorização para viajar assinada pelo pai (já falecido) ou marido (com quem ela não se relaciona mais) e ainda enfrentar outros absurdos.    

Luiza Mariani constrói uma Cyclone profunda, que até se fragiliza, mas engole seco e luta. O que ela tem é sua força e a ajuda de duas mulheres: a amiga Marie (Karine Teles) e de uma apoiadora de última hora, Ada (vivida por Magali Biff). 


Vale destacar a sororidade fora da tela também. A obra se sustenta na colaboração entre mulheres: roteiro de Rita Piffer, produção executiva de Diana Almeida, direção de fotografia de Heloísa Passos, direção de arte de Ana Paula Cardoso, figurino de Gabriella Marra e edição de Joana Collier. 

O longa, livremente inspirado nas obras “Neve na Manhã de São Paulo”, de José Roberto Walter, e em “O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo”, de Oswald de Andrade. Tem, ainda, pesquisa de Suzane Jardim. 

Para derrubar tantos entraves, a raiva é energia para ela — e promete energizar o público também. Energia que faltou a Maria de Lourdes, apelidada “Miss Cyclone”, que morreu por complicações decorrentes de um aborto e retirada do útero — procedimento fruto da insistência do amante, Oswald de Andrade. Vale a pena conferir o filme. 


Ficha Técnica:
Direção: Flávia Castro
Roteiro: Rita Piffer
Produção: Mar Filmes e Muiraquitã Filmes, coprodução Video Filmes e Claro
Distribuição: Bretz Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes
Duração: 1h40
Classificação: 16 anos
País: Brasil
Gênero: drama