09 dezembro 2025

Delicado e poético, "Livros Restantes" é uma sincera homenagem à literatura

Denise Fraga em excelente desempenho entrega uma protagonista quase onipresente (Fotos: H2O Films)
 
 

Mirtes Helena Scalioni

 
Embora apresente algumas surpresas no decorrer da trama, não se pode dizer que "Livros Restantes" seja um filme carregado de reviravoltas e plot twists, assim como não se pode considerá-lo suspense pelo fato de, em algum momento, a ação levar o espectador a se perguntar: houve mesmo um crime? 

Mas, talvez por isso, o longa dirigido por Márcia Paraíso e que estreia nos cinemas brasileiros dia 11 de dezembro mereça ser visto. É, no mínimo, uma história peculiar e curiosa, com cenas filmadas no Brasil e em Portugal. 

Tendo Denise Fraga em excelente performance como protagonista quase onipresente, o filme começa de um jeito lento e morno, como costumam ser os dias e noites praianos. 


Afinal, estamos em Florianópolis, mais precisamente num recanto chamado Barra da Lagoa, onde a professora Ana Catarina está se despedindo da família e de amigos, pois está de partida para Portugal onde - presume-se - ela vai continuar seus estudos e, como faz questão de dizer, contar apenas consigo mesma.

Aos poucos, o público se familiariza com o jeito sensível de Aninha - como é conhecida por todos na ilha - e, embora cause algum estranhamento, não é assim tão grave, esquisito ou indelicado o que ela se propõe a fazer logo no início. 


Depois de esvaziar a casa, tirar móveis, objetos e animais domésticos, ela descobre que sobraram cinco livros na sua estante de madeira. Como estão autografados e com dedicatórias, a professora decide devolver cada um deles às pessoas que, em algum momento da vida, lhe deram os tais livros de presente.

Numa espécie de miolo do filme, enquanto o espectador vai sendo lentamente apresentado à família de Ana, alguns assuntos sempre considerados espinhosos chegam à tona. 


E o que emerge das conversas à mesa, entre camarões, moquecas e brindes, pode não agradar, ferir e machucar. São os chamados segredos de família, passíveis de ocorrer em todos os agrupamentos familiares, independente da nacionalidade deles.

Além de Denise Fraga e Augusto Madeira - que faz o ex-marido dela, Carlos Henrique -, os demais atores e atrizes são desconhecidos do grande público e tudo indica que a diretora foi buscá-los na região. 

Para citar os mais frequentes, estão lá Renato Turnes, Vanderleia Will, Manuela Campagna, Marcinho Gonzaga, Andrea Buzato, Paulo Vasilescu, Severo Cruz, Joana dos Santos, Adriano de Brito e Leandro Batz, variando entre familiares e amigos da protagonista. 


Outro ponto alto de "Livros Restantes" é a trilha sonora. Em sua maioria, são canções conhecidas que pontuam aqui e ali, embalando ora cenas de ternura e amizade, ora de crises e brigas. 

Mas o que chama a atenção é uma música cuja autoria é atribuída a Zininho e que aparece no filme em duas versões: às vezes como um samba, deliciosamente tocado e cantado nos momentos festivos; outras vezes em ritmo de fado, criando toda aquela atmosfera de tristeza e saudade. Genial. 

Por falar em Portugal, é preciso registrar que o livreiro que atende a protagonista numa livraria em Portugal é o maestro Antônio Vitorino de Almeida. 


A beleza do filme está exatamente nos reencontros que Ana Catarina programa e promove para devolver os livros que restaram em sua estante. 

Até porque, em alguns casos, o tempo acabou por distanciá-la de algumas dessas pessoas e algumas não fazem mais parte do seu círculo de amigos. Houve até quem se modificasse tanto a ponto de não ser mais a mesma pessoa de antes. 

Nesses encontros, nem sempre bem sucedidos, é que parece estar o grande motivo do longa de Márcia Paraíso: fazer uma ode ao livro, uma verdadeira louvação à literatura, E isso é feito de uma forma tão delicada e bonita que é como se o público estivesse diante de um poema.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Márcia Paraíso
Produção: Plural Filmes e coprodução Filmógrafo
Distribuição: H2O Films
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h44
Classificação: 14 anos
Países: Brasil e Portugal
Gênero: drama

06 dezembro 2025

"A Natureza das Coisas Invisíveis": a complexidade da existência humana pelo olhar de duas crianças

Longa aborda a importância de permitir que crianças participem das conversas sobre a finitude da vida
(Fotos: Vitrine Filmes)
 
 

Patrícia Cassese

 
Para usar uma expressão em voga no momento, há tantas camadas no longa-metragem "A Natureza das Coisas Invisíveis", em cartaz no Cine Una Belas Artes, que certamente o processo de decupagem na recepção do conteúdo vai acompanhar o público por um bom tempo após o fim da sessão. 

De pronto, é preciso dizer que trata-se de um filme que aborda um tema muito, muito intrincado: a finitude da vida. Não bastasse, o faz principalmente pelo olhar de duas crianças, ambas com dez anos de idade. São elas: Glória (Laura Brandão) e Sofia (Serena), ambas excelentes, espontâneas e visivelmente comprometidas e entregues. 

Mas, que fique claro, o primeiro longa-metragem de Rafaela Camelo trata a questão com toda a delicadeza possível nesse árido caminho, de modo que se algumas lágrimas teimarem em escorrer pelo rosto, provavelmente serão mais por outro tipo de emoção que a relacionada à tristeza.


A cena inicial desse que é descrito como um coming of age* nos leva a um banheiro de uma escola, com seus tradicionais rabiscos na parede. Discretamente, pela fresta de uma porta, uma garota - Glória - aguarda as demais saírem para, só então, sair da cabine. 

Já no frame seguinte, um indicativo de que o filme também transitará por outra esfera que não apenas a da realidade, do crível - mas é melhor não estragar a surpresa. Se frequentar a escola não faz o cotidiano de Glória ser diferente de boa parte das crianças do país, o outro turno do dia, sim. 

Isso pelo fato de sua mãe, a enfermeira Antônia (Larissa Mauro), não tendo com quem deixar a menina, acaba costumeiramente arrastando-a para o seu trabalho, em um hospital.

Uma das cenas mostra que a presença de Glória já é familiar aos pacientes, bastante idosos, que a recebem como um raio de sol que adentra a penumbra do cotidiano hospitalar. A menina também transita com naturalidade por outros ambientes da instituição, como um quarto de pertences "esquecidos" por lá. 


No entanto, a rotina daquele dia específico é quebrada com a chegada de outra criança, Sofia, que adentra o local praticamente sem fôlego, trazendo consigo a bisavó, Francisca (Aline Marta Maia), que sofreu uma queda em casa.

O acidente, na verdade, é uma intercorrência em meio a uma série de problemas que a idosa vem enfrentando nos últimos tempos, mediante o avanço da demência que a assola. Neste episódio, um ponto que chama atenção é o fato de, no momento da queda, Bisa estar em casa apenas com uma criança, sendo que seu estado demandaria, claro, a presença de um adulto. 

Eis que a mãe da menina, Simone (Camila Márdila, sempre excelente), entra em cena e ficamos sabendo que, assim como Antônia, ela também é uma mãe solo. A necessidade imperiosa de trabalhar a obriga a deixar a filha sozinha com sua avó - não por outro motivo, de cara demonstra receio de perder a guarda da criança por conta do acidente.

Além da coincidência da idade e da configuração familiar, as duas meninas também vêm de experiências marcantes. Glória é uma garota transplantada (recebeu um coração). 


Já Sofia, uma criança trans - e palmas para a diretora por tratar esse tema com extrema sensibilidade e naturalidade, sem transformá-lo em um ponto crucial da trama, que, na verdade, enverga, como já dito, pelos mistérios que rondam a nossa finitude. 

De todo modo, para interpretar Sofia, Rafaela Camelo fez questão de escolher uma atriz que tivesse lugar de fala, ou seja, uma criança trans - o que já é um avanço e tanto. 

Em meio a tantos pontos comuns, uma característica que diferencia as duas é justamente a visão da morte. Acostumada ao ambiente hospitalar, Sofia vê a partida dos pacientes com uma espécie de "tristeza conformada". 


Assim, mexer nos tais pertences esquecidos por lá, vestir roupas de quem partiu, é um ato que vê com extrema naturalidade, ao contrário de Sofia. Como a garota chegou ao hospital com a blusa manchada de sangue, Glória toma a iniciativa de mostrar a ela uma blusa de criança por lá disponível.  

O que para ela é uma solução óbvia, assusta a outra menina, que acredita em energias emanadas por aqueles que já partiram. Fato é que não só as duas estabelecem amizade, como as respectivas mães também. E, quando Bisa tem alta, Antônia se oferece para acompanhar sua recuperação no sítio para o qual a idosa será levada.

Não, não é meramente um gesto de altruísmo, posto que Simone nem teria como pagá-la. É que a enfermeira entende ser essa uma boa saída para a filha não passar o período fora da escola num ambiente no qual a luta pela vida é muitas vezes atravessada pela derrota. 

E é nesse ponto que o "A Natureza das Coisas Invisíveis" ganha uma espécie de ponto de virada, aliás, pontuada pela voz de Milton Nascimento, entoando "Fazenda". 


Assim, do ambiente hospitalar "frio" e asséptico, marcado por sondas, acessos e medidores, a exuberância da vida no campo irrompe. E o vento que balança as folhas é um indicativo emblemático. O verde ocupa a tela, bem como a fauna costumeira da vida campestre, como patinhos e outros animais. 

No material de divulgação do filme, a diretora diz que a divisão do longa em duas partes seria "uma metáfora estrutural". "Como se, naquele ponto, o filme da forma que vinha sendo apresentado tivesse que morrer para outro se formar”. 

Na casa propriamente dita, uma edificação singela como tantas dispersas interior afora, a fé marca forte presença por meio dos santos reunidos num altar, ao lado de figuras como a do Preto Velho, estampando o sincretismo religioso que pauta o país.


A presença das mulheres da redondeza exalta a importância da sororidade, bem como a cumplicidade orgânica que se estabelece entre elas, também típica do interior do Brasil - no caso, em Goiás. Na vivência do sítio, o aspecto sobrenatural se acentua, seja por meio das diversas práticas advindas de crenças populares quanto pelos ditames religiosos. 

Em uma das cenas, a expressão no rosto de Antônia deixa evidente seu ceticismo quando a alguns expedientes que por ali são culturalmente introjetados. No entanto, ela se deixa levar, seja por respeito ou pelo espírito de "pagar para ver". Ou por ambos. Afinal, que se arvoraria a, em situações difíceis, não tentar recorrer ao que se apresenta?

Ao fim e ao cabo, nos 90 minutos de percurso da empreitada, Rafaela Camelo mostra que sua estreia no formato longa se deu com o pé direito, para usar uma expressão também popular no país. 


Na beleza do intangível, no âmbito do imponderado, nas dúvidas que assolam o percurso do ser humano na Terra, e mesmo com uma pitada do fantástico, "A Natureza das Coisas Invisíveis" enreda o espectador com tal força que o acender das luzes da sala de cinema, após a cena final, ao som de Fernando Mendes, vai flagrar muita gente com os olhos marejados. Como dito no inicinho desse texto.

*Coming of age é o nome que se dá a filmes que acompanham a transição da infância para a adolescência, por vezes também para a vida adulta.

Curiosidade

- Estudos recentes indicam que no Brasil cerca de 1,3 milhão de crianças já enfrentaram a perda de pelo menos um dos pais ou de um morador do domicílio, o que reforça a magnitude desse impacto.

- Essas circunstâncias aumentam os riscos de ansiedade, depressão, dificuldades escolares e outros desfechos negativos de longo prazo. 


Ficha técnica:
Direção e Roteiro:
Rafaela Camelo
Produção: Moveo Films
Distribuição: Vitrine Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes
Duração: 1h30
Classificação: 12 anos
Países: Brasil e Chile
Gênero: drama