Em meio ao caos político do país, o patriarca impõe restrições severas à vida de sua família (Fotos: Mares Filmes) |
Carolina Cassese
Segundo o princípio dramático de Tchekhov, se um revólver aparece no começo de uma história, ele eventualmente será disparado. Em “A Semente do Fruto Sagrado” ("The Seed of the Sacred Fig"), do diretor iraniano Mohammad Rasoulof, o objeto – presente em uma das primeiras cenas – é central para o desenrolar da história.
O filme está em cartaz no Cine Una Belas Artes e se encontra na shortlist para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro como representante da Alemanha.
Uma das discussões mais importantes da trama gira justamente em torno do revólver de Iman (Misagh Zare), personagem que trabalha como juiz de instrução para o governo. Como a arma de um funcionário tão importante pode ter desaparecido?
O protagonista, então, passa a ficar bastante desconfiado da esposa Najmeh (Soheila Golestani), e das filhas, Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki), que questionam algumas medidas do regime iraniano.
Em meio ao caos político do país, o patriarca impõe restrições severas à vida de sua família. Logo acompanhamos diversos embates entre os personagens, que se esforçam para defender os respectivos ideais. A gravidade da situação é significativa já que, caso a arma – pertencente ao governo – não seja encontrada, Iman corre o risco de ir para a cadeia.
Não é irrelevante o fato de o próprio diretor do filme ter sido condenado a oito anos de prisão pelo regime iraniano, que considerou os trabalhos de Rasoulof “ameaçadores para a segurança do país”. O realizador, então, precisou deixar o Irã para não ser detido.
A ameaça do encarceramento – familiar para Rasoulof há anos – é importante para a história de “A Semente do Fruto Sagrado”, inclusive para as personagens femininas, que frequentemente se veem como prisioneiras do espaço doméstico.
Em determinada cena, Najmeh demonstra preocupação com as filhas, argumentando que “lá fora é perigoso”. Não demoramos a perceber, porém, que a ameaça também se encontra dentro da casa, um ambiente significativamente violento.
Aqui, podemos estabelecer um paralelo com as justificativas de Iman para a manutenção do autoritarismo; segundo ele, é necessário lutar contra inimigos externos, já que “o mundo inteiro está contra o Irã”. Por outro lado, a violência contra os próprios cidadãos não parece ser levada em conta pelo protagonista.
Em diversos momentos, as personagens observam os principais acontecimentos do país a partir de casa. Najmeh chega a ter medo de ser vista na janela de seu apartamento, pois, como esposa de um funcionário do governo, acredita que não deveria sequer observar os protestos contra o regime.
Ao longo do filme, assistimos a uma mescla de imagens ficcionais com vídeos reais do Irã contemporâneo, em especial de manifestações contra o regime. Esses registros nos fazem compreender a relevância do tema abordado na tela: em 2022, a jovem Mahsa Jina Amini foi presa pela polícia iraniana sob a acusação de usar o hijab de maneira inadequada, descumprindo o código de vestimenta imposto pelo governo.
Segundo relatos, Amini teria sido espancada pelas autoridades e, três dias depois, foi encontrada sem vida. O ocorrido revoltou parte da população iraniana, que tomou as ruas em protestos contra a violência. Muitas das imagens reais são chocantes e evidenciam o caos político do país.
O ato de filmar, aliás, também é importante para o universo ficcional da produção; o gesto é realizado por jovens que se manifestam contra o regime, ao passo que também é reproduzido pelo personagem Iman, numa tentativa de intimidar sua família.
A partir do longa, podemos refletir que as mesmas imagens podem ilustrar narrativas díspares. Enquanto (parte dos) registros de repressão policial são mostrados pela mídia oficial como uma reação justa às ações de “vândalos”, veículos independentes exibem os vídeos e chamam atenção para a violência à qual os manifestantes são submetidos.
Por motivos óbvios, o diretor tem consciência de que a câmera é uma ferramenta de poder, que pode ser utilizada para finalidades diversas. Em entrevista ao NYU Program Board, Rasoulof comentou sobre a produção e, ainda, sobre a importância de continuar a filmar: “Eu acho que você pode ser cineasta na prisão [...] Você ainda pode ser cineasta, mas então se torna um cineasta sacrificado pela censura. E eu pensei: tenho tantas ideias na minha cabeça que realmente quero realizar, e é isso que devo fazer”.
O desenrolar do filme evidencia que o diretor de fato tem talento para contar histórias, já que torcemos muito pelas personagens e nos angustiamos a cada adversidade que elas devem enfrentar. Como mencionamos, a ameaça da prisão logo se transforma em realidade para as mulheres da história, que passam a se sentir encarceradas em ambientes familiares.
Com um ritmo eletrizante, “A Semente do Fruto Sagrado” é eficiente em prender a atenção do espectador ao longo de quase três horas. Nos encontramos vidrados em diferentes momentos do filme, que também promove reflexões sobre as particularidades de governos (e sujeitos) repressores ao redor do mundo.
O tema não deixa de ser atual: precisamos pensar exaustivamente sobre as muitas violências contemporâneas, externas e domésticas. Bastante perspicaz, o olhar de Rasoulof com certeza ocupa um espaço significativo nesse processo.
Ficha técnica:
Direção e roteiro: Mohammad RasoulofDistribuição: Mares Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes - sala 3, sessão às 15h20
Duração: 2h46
Classificação: 14 anos
Países: Alemanha, França, Irã
Gêneros: drama, suspense
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