29 março 2025

Aclamada pela crítica, “Ruptura” suscita reflexões sobre distopias tecnológicas e o mundo do trabalho

Série de 2022 vencedora do Emmy está em sua segunda temporada, sob a direção de Ben Stiller e confirma renovação para a terceira (Fotos: Apple TV+)


Carolina Vas


(O seguinte texto contém alguns spoilers da segunda temporada)

“Trabalho é só trabalho, não é?” A frase dita pelo protagonista Mark (Adam Scott) ilustra uma das principais discussões da série "Ruptura" ("Severance"), idealizada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller.

A produção da Apple TV+, que estreou em 2022, é centrada na vida de funcionários da Lumon Industries, empresa que realiza um procedimento cirúrgico extremo, cujo objetivo é separar as memórias pessoais das profissionais. 

Essa prática leva à formação de duas personalidades distintas: o “interno”, que só possui lembranças relacionadas ao trabalho, e o “externo”, que não tem conhecimento das atividades associadas ao ambiente corporativo. 


Lançada em 2025 (o último episódio foi disponibilizado em 21 de março), a segunda temporada de "Ruptura" segue explorando as diferentes realidades desse grupo e investiga com mais detalhes a construção psicológica dos personagens. 

A série, que acaba de ser renovada para uma terceira temporada, é repleta de elementos complexos e, por isso, avisamos que esta crítica certamente não conseguirá abordar todos os temas relevantes para a história. 

Na primeira parte, acompanhamos as histórias de Mark, Helly (Britt Lower), Irving (John Turturro) e Dylan (Zach Cherry), funcionários do departamento de Refinamento de Macrodados. Cada um lida de forma diferente com a ruptura, mas, aos poucos, todos começam a questionar os objetivos da empresa. 


Já a segunda temporada, passados alguns meses após os eventos iniciais, é centrada nas implicações da “Revolta do Macrodat”, uma manifestação dos empregados contra as condições de trabalho na Lumon, evidenciando ainda mais os conflitos entre as diferentes versões dos funcionários.

Uma das principais perguntas que surgem – desde os primeiros episódios – diz respeito às motivações dos que optam por realizar a ruptura: por que alguém escolheria fazer um procedimento tão violento, dividindo a própria memória? 

As respostas são diversas, a depender da situação de cada personagem. Quanto a Mark, por exemplo, compreende-se que o protagonista tomou essa decisão por não conseguir lidar com o trauma de ter perdido sua esposa, Gemma (Dichen Lachman). 


Nesse sentido, a série também reflete sobre como as pessoas realizam ações extremas para não lidar com sentimentos considerados “negativos”, especialmente numa cultura em que se deve ostentar felicidade. 

Além disso, é notável o fato de que, antes de realizar o procedimento, Mark era professor de história, campo que trabalha a partir da memória – e, mesmo assim, ele opta por fragmentar suas lembranças.

Logo a partir da sinopse, pode-se observar que a produção reflete não apenas acerca de distopias tecnológicas, mas também sobre o mundo do trabalho. Na sociedade atual, uma das primeiras perguntas que fazemos uns aos outros é: “O que você faz?” – ou seja, “com o que você trabalha?”. 


Dessa maneira, o universo da série é sim bastante distópico, mas também é fato que muitas das discussões são pertinentes ao modo de vida contemporâneo. 

Algumas empresas empregam medidas bastante similares às da Lumon: discursos extremamente produtivistas, políticas superficiais de inclusão (que não alteram a estrutura da desigualdade) e a imposição irritante de atividades “divertidas” para os funcionários.

Podemos identificar muitos diálogos com debates sobre a precarização do trabalho, considerando, por exemplo, o conceito de “Capitalismo 24/7”, desenvolvido por Jonathan Crary. Para o pesquisador, o sistema econômico vigente promove uma lógica de funcionamento acelerado, em que o tempo para descanso é cada vez mais desvalorizado.


Em "Ruptura", existe uma versão dos personagens que de fato vive a realidade 24/7: para eles, a existência é necessariamente voltada para a cultura produtivista.

Como esperado, as discussões sobre o ambiente corporativo também estão presentes na segunda temporada. Cobel (Patricia Arquette) é uma das personagens que tem a identidade significativamente associada ao trabalho, mesmo sem ter realizado a ruptura. 

A partir do momento em que não está mais empregada na Lumon, ela se encontra bastante perturbada e precisa buscar uma nova identidade. No episódio “Sweet Vitrols”, o espectador pode conhecer mais sobre a história da personagem, que passou a integrar a Lumon desde muito jovem e, ao longo do tempo, foi sendo cada vez menos reconhecida pelos líderes da empresa. 


Ambientado numa cidade costeira, o capítulo apresenta planos impressionantes e é bastante eficiente em retratar o isolamento do local (e da personagem). 

É interessante observar que alguns episódios dessa temporada são primordialmente ambientados em espaços externos, o que não ocorre na primeira temporada (mais focada nas atividades dos “internos”). 

Nesse sentido, os capítulos recentes representam bem esse embate entre as versões “externas” e “internas” dos personagens, destacando as diferenças que marcam os dois mundos. 

Ao longo dos episódios, a maior parte dos funcionários de fato entra em conflito com suas respectivas identidades. Mark, por exemplo, sofre ao passar por um processo de “reintegração”, enquanto Helly questiona o próprio papel na empresa, se opondo aos ideais de sua “externa”. 

Outros personagens, como Irving e Dylan, começam a buscar mais respostas sobre os objetivos da Lumon. 


De forma geral, a segunda temporada segue sendo esteticamente notável, com escolhas visuais que reforçam a atmosfera perturbadora da série. Os episódios recentes foram reconhecidos pela crítica: no Rotten Tomatoes, "Ruptura" atualmente está com 95% de aprovação, índice que destaca a qualidade da série. 

As atuações merecem destaque: Adam Scott protagoniza cenas difíceis, expressando com excelência as muitas angústias de seus dois personagens. Por sua vez, Patricia Arquette continua construindo uma personagem única e bastante complexa. 

Na emissão "The Severance Podcast" (comandada por Ben Stiller e Adam Scott), a atriz conta que participou de todo o processo de composição da personagem, sugerindo a cor do cabelo de Cobel (um loiro platinado, bastante frio e opaco) e construindo a entonação característica da funcionária da Lumon. 


No que diz respeito à terceira temporada, muitas perguntas ainda devem ser respondidas: o que acontecerá com Mark e Helly? Haverá uma resistência dos internos à Lumon? Como será esse movimento? Milchik também irá se opor à empresa? 

Mesmo que ainda tenhamos muitas dúvidas, os episódios explicam melhor as motivações dos personagens principais e, ainda, reforçam a nossa torcida para que mais funcionários se revoltem contra as condições de exploração. 

A partir do exagero, a série nos auxilia a compreender discussões presentes na nossa própria sociedade, cujos ideais produtivistas também são significativamente bizarros.


Ficha técnica:
Direção: Ben Stiller
Produção: Apple TV+
Exibição: Apple TV+
Duração: média de 44 minutos na 1ª temporada (com 9 episódios) e média de 49 minutos na 2ª temporada (10 episódios)
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gênero: suspense

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