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27 janeiro 2025

"Anora": uma história de amor, desilusão e realidade

Vencedor da Palma de Ouro, em Cannes, filme é um dos indicados ao Oscar 2025 (Fotos: Universal Pictures)


Filipe Matheus
Parceiro Maravilha de Cinema


Linda, sexy e poderosa, Ani (Mikey Madison) é uma jovem trabalhadora do sexo na região do Brooklyn, nos EUA. Com seu olhar sedutor, ela encanta por onde passa. No entanto, seu mundo vira de cabeça para baixo quando o amor por Ivan (Mark Eydelshteyn), filho de um oligarca russo, a envolve em uma trama de romance e conflitos familiares. 

Esse é o ponto de partida de “Anora”, dirigido por Sean Baker, que explora até que ponto o preconceito e a desigualdade social podem atrapalhar uma relação. 

Na trama, a jovem casa impulsivamente, acreditando estar vivendo um conto de fadas. No entanto, seu sonho é ameaçado quando a família dele decide viajar para os EUA para anular o casamento.


Em cartaz nos cinemas, o longa é um dos indicados a Melhor Filme do Oscar 2025, foi vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024 e liderou as indicações do The Gotham Awards do cinema independente.

A narrativa é envolvente, mostrando como a ilusão da protagonista a impulsiona a acreditar nesse amor. É uma situação que reflete a sociedade atual, em que muitas mulheres são taxadas pelo que podem oferecer, e não por quem são de verdade.

A interpretação de Anora feita por Mikey Madison é completa, apresentando ao público uma jovem com múltiplas facetas, que consegue ser encantadora, ingênua, impetuosa, debochada e autêntica de acordo com a situação.


No elenco estão ainda Yura Borisov (Igor), Karren Karagulian (Toros), Vache Tovmasyan (Garnik), Luna Sofia Miranda (Lulu) entre outros artistas soviéticos que contribuem para a narrativa da história.

A trilha sonora é uma fusão envolvente de músicas eletrônicas, dance e hip-hop, que complementam a atmosfera urbana do filme. Entre os destaques estão a envolvente “Greatest Day”, da banda Take That, tema de abertura; “Dreaming” (da banda Blondie); e “All the Things She Said” (t.A.T.u.), cada uma escolhida para refletir momentos-chave da personagem.


A cada momento, o público mergulha na história da garota, sendo confrontado com a dura realidade vivida. O filme escancara como a falta de respeito e de dignidade impede as “Anoras” da vida real de alcançarem a felicidade.

O diretor e roteirista Sean Baker entrega um roteiro criativo, mas erra ao não explorar melhor a vida da protagonista. Anora passa boa parte da trama buscando respostas, sem encontrar o que realmente importa: o amor-próprio.

“Anora” é uma obra que mistura romance, drama e crítica social, convidando o público a refletir sobre questões de desigualdade e preconceito. Um filme emocionante, que merece ser conferido nos cinemas.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Sean Baker
Produção: FilmNation Entertainment, Focus Features
Distribuição: Universal Pictures
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h19
Classificação: 16 anos
País: EUA
Gêneros: comédia, drama

15 janeiro 2025

"Sol de Inverno" retrata, com delicadeza, relações sociais e laços afetivos

A fotografia do filme, em tons pastéis e texturas suaves, é uma ode à transitoriedade do inverno
(Fotos: Michiko Filmes)


Silvana Monteiro


"Sol de Inverno" ("Boku No Ohisama") é um dorama japonês que traduz com delicadeza a efemeridade dos momentos marcantes e a beleza das relações humanas. Sob a direção sensível de Hiroshi Okuyama, o longa perpassa a narrativa esportiva para se tornar um estudo poético sobre os laços sociais, as descobertas e os afetos que florescem mesmo no rigor do inverno.

A história segue Takuya (Keitatsu Koshiyama), um jovem introspectivo que descobre na patinação artística um refúgio para sua alma inquieta. Enquanto os colegas da pequena ilha japonesa se dedicam ao hóquei no gelo, ele encontra inspiração em uma pessoa. 


Orientados pelo experiente técnico Hisashi Arakawa (Sôsuke Ikematsu), Takuya e Sakura (Kiara Takanashi) formam uma dupla que reflete, com naturalidade, a profundidade de uma amizade que transcende o gelo.

A narrativa de Okuyama se constrói com ritmo pausado, como as mudanças sutis das estações, inicialmente, sem conflitos, tornando-se quase uma crônica. O diretor valoriza os silêncios, os olhares e os gestos mínimos, elementos que evocam a introspecção típica do cinema japonês contemporâneo. 

Sobre Takuya, por exemplo, é trabalhada uma dificuldade pessoal e neurotípica, como uma metáfora das barreiras emocionais que o personagem precisa superar. Sua relação com Sakura é desenvolvida de forma genuína e encantadora, equilibrando fragilidade e força.


A fotografia do filme, em tons pastéis e texturas suaves, é uma ode à transitoriedade do inverno. As paisagens gélidas e o contraste entre a luminosidade fria da neve e o calor emocional dos personagens criam um cenário estético que dialoga profundamente com a trama. 

Já a trilha sonora pungente, amplifica a experiência sensorial, guiando o espectador pelos momentos de alegria, contemplação, melancolia e superação dos personagens.


Um ponto de destaque na obra é a forma como Okuyama aborda a temática homoafetiva. A vida íntima do técnico Arakawa é tratada com respeito e sensibilidade, mostrando um contraste poderoso entre a afeição sincera do personagem e o preconceito ainda latente na sociedade retratada. 

Essa camada adiciona profundidade ao filme, ao mesmo tempo em que lança luz sobre questões sociais contemporâneas, sem jamais desviar o foco dos laços construídos entre os protagonistas.

O longa captura a essência dos momentos transitórios e nos relembra que a beleza da vida está, muitas vezes, no efêmero. E mesmo no inverno rigoroso, um raio de sol pode mudar tudo. 


O desfecho inconclusivo, longe de frustrar, sugere uma aceitação da impermanência, um conceito profundamente enraizado na cultura japonesa.

Em suma, "Sol de Inverno" é uma obra que encanta tanto pela forma quanto pelo conteúdo. É uma celebração da conexão humana, da superação de adversidades e da busca pela beleza em meio às dificuldades. 

Hiroshi Okuyama reafirma seu lugar como uma das promessas mais notáveis do cinema japonês contemporâneo, entregando uma narrativa tão delicada quanto poderosa. 


Ficha técnica:
Direção, roteiro, fotografia e montagem: Hiroshi Okuyama
Distribuição: Michiko Filmes
Música: Yoshinari Sato
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h30
Classificação: 12 anos
Países: Japão, França
Gênero: drama

05 maio 2024

Cine Humberto Mauro inaugura programação gratuita de filmes com o “Ciclo Víctor Erice”

Cine Humberto Mauro (Divulgação)


Da Redação


Na próxima terça-feira (7), o Cine Humberto Mauro inaugura a faixa de programação com filmes de um dos maiores diretores da Espanha, Víctor Erice, responsável por clássicos como “O Espírito da Colmeia”. As sessões gratuitas acontecem de 7 de maio a 11 de junho, sempre às terças-feiras, às 20 horas. 

Destaque para o trabalho do cineasta com curtas-metragens no início da carreira quanto seu último filme, “Fechar os Olhos”, lançado em 2023 e aclamado pela crítica especializada. 

O cineasta e os diferentes momentos de sua carreira estão no centro da mais nova faixa de programação do Cine Humberto Mauro, na qual, em cada mês, haverá exibições semanais dedicadas à filmografia de grandes diretores. Ao longo dos meses de maio e junho, o público poderá assistir sempre às terças-feiras, a partir das 20h, a um filme do “Ciclo Víctor Erice”.

 “O Espírito da Colmeia” (Fotos: Víctor Erice)

A programação começa no dia 7/5 (terça-feira), com “O Espírito da Colmeia”, de 1973, e termina em 11/6 (terça-feira), exibindo o longa-metragem “Fechar os Olhos”, lançado em 2023. 

A mostra é uma parceria da Fundação Clóvis Salgado com o Instituto Cervantes de Belo Horizonte, e propõe apresentar o trabalho de Erice de forma ampla, desde os trabalhos para a Escola de Cinema e seus curtas até os longas mais conhecidos do realizador.

Além da exibição dos filmes, haverá duas atividades formativas e uma entrevista exclusiva com o cineasta espanhol Jaime Chávarri, mediada por Victor Guimarães, crítico, programador e professor de cinema. A entrevista será publicada na plataforma CineHumbertoMauroMAIS (cNH+). A entrada no Cine Humberto Mauro é gratuita, e os ingressos para as exibições podem ser retirados na bilheteria do cinema, a partir de 1 hora antes de cada sessão.

                                                                                   "Os Desafios"

Mesmo com uma pequena filmografia, Erice é reconhecido mundialmente. Seu último longa, lançado 30 anos depois do anterior, foi um marco no mundo do cinema, com estreia mundial na sessão Cannes Première do 76º Festival de Cinema de Cannes. Ao longo da vida, o diretor recebeu homenagens em Locarno (na Suíça), foi membro do Júri de Cannes, além de ganhar os prêmios do Júri e da Crítica no Festival.

A arte no olhar

O primeiro filme da programação é “O Espírito da Colmeia” (1973), um de seus longas-metragens mais famosos, vencedor do prêmio de Melhor Filme no Festival de San Sebastián (Espanha). A obra parte da atmosfera da Espanha pós-guerra, durante o governo de Francisco Franco, e acaba fazendo uma homenagem ao cinema, como forma de compreender o mundo.

"O Sul"

Para iniciar a mostra aliando reflexão e fruição, essa exibição será acompanhada de uma atividade formativa na forma de uma sessão comentada, com participação de João Dumans e Breno Henrique, cineastas e pesquisadores mineiros da área de cinema.

No dia 14 de maio, será exibido o longa “Os Desafios” (1969), que aborda como situações que parecem normais da vida podem acabar em surtos de violência. 

Em seguida, na próxima terça, dia 21, o Cine Humberto Mauro projeta “O Sul” (1983): a obra desenvolve um retrato de uma família na Espanha dos anos 1950, sob o olhar da jovem Estrella, uma menina obcecada pelos segredos do sul do país.

"O Sol de Marmelo"

Na última sessão de maio, dia 28, o público poderá conferir o documentário “O Sol de Marmelo” (1992), ganhador dos prêmios do Júri e da Crítica no Festival de Cannes, além de figurar na lista dos 50 maiores documentários de todos os tempos pela revista britânica “Sight & Sound”. A obra acompanha o processo de composição de um quadro do pintor Antonio López (o passar dos dias e o cotidiano das pessoas e das coisas).

O média-metragem “Os Dias Perdidos” (1963), realizado por Víctor Erice na Escola Oficial de Cinematografia da Espanha, como projeto de licenciatura, será exibido no dia 4 de junho. Esta é uma das primeiras obras dirigidas pelo cineasta. 

Neste penúltimo dia de exibição acontece mais uma atividade formativa: João Dumans apresentará uma palestra comentando o trabalho do espanhol.

"Fechar os Olhos"

A mostra finaliza com o último longa-metragem realizado pelo diretor, “Fechar os Olhos” (2023), que percorre a história de Júlio Arenas, um famoso ator espanhol que desaparece durante as gravações de um filme. Lançado 30 anos após seu último longa, o filme conquistou a crítica mundial, e é constantemente comparado com a própria vida de seu criador.

“Estamos muito felizes com esse ciclo, porque é uma parceria com o Instituto Cervantes, uma instituição com a qual já colaboramos várias vezes, então é muito interessante fazer essa celebração da cultura espanhola, em um novo modelo de programação. Normalmente planejamos as mostras para vários dias seguidos, mas para o Víctor Erice estamos apostando nas sessões semanais. Acredito que, assim, as pessoas vão ter mais oportunidade de se planejar e ter mais tempo para refletir e decantar cada filme”, explica Vitor Miranda, gerente de Cinema da Fundação Clóvis Salgado e programador da mostra.

Programação:
07/05 - “O Espírito da Colmeia”
14/05 - “Os Desafios”
21/05 - “O Sul”
28/05 - “O Sol de Marmelo”
04/06 - “Os Dias Perdidos”
11/06 - “Fechar os Olhos”


                                                                            "Os Dias Perdidos"

Serviço:
“Ciclo Víctor Erice”
Período: 7/5 a 11/6, sempre às terças-feiras
Horário: 20 horas
Local: Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes - Av. Afonso Pena, 1537, Centro, Belo Horizonte
Classificações indicativas: Variáveis
Entrada: gratuita
Os ingressos poderão ser retirados a partir de 1 hora antes de cada sessão, na bilheteria do cinema
Informações para o público: (31) 3236-7400

22 abril 2024

“Clube Zero” provoca com questões alimentares e alienação

Filme da diretora austríaca Jessica Hausner apresenta uma fotografia geometricamente trabalhada enquanto a trama desenrola temas pesados (Fotos Pandora Filmes)


Eduardo Jr.


Uma sátira sobre modinhas alimentares e os perigos do enfraquecimento dos laços entre pais e filhos no mundo moderno. Esta pode ser uma das definições de “Clube Zero”. A produção austríaca, indicada à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, chega os cinemas brasileiros no dia 25 de abril, distribuído pela Pandora Filmes. 

Dirigido por Jessica Hausner, o longa apresenta uma fotografia geometricamente trabalhada, com cores vibrantes, enquanto a trama desenrola temas pesados. É a perfeição diante dos olhos escondendo verdades dolorosas. Uma proposta de um jogo provocativo para o espectador. 


Na trama, Miss Novak, protagonizada por Mia Wasikowska ("A Ilha de Bergman" - 2022 e "A Despedida" - 2021) é uma professora de nutrição recém-chegada a uma escola de alta classe. A admiração dos alunos por ela é percebida logo nas primeiras cenas. Mas o método baseado em comer cada vez menos se torna uma ameaça à tranquilidade da instituição de ensino e dos pais.  

O espectador acompanha algumas cenas como se observasse câmeras de vigilância, posicionadas nas quinas, no alto. E, aos poucos, elas se aproximam, enquanto exibem o método de conquista dos adolescentes e o desenvolvimento daquele conceito estranho de nutrição. 


Mesmo sem aprofundar em alguns pontos, o longa pode fazer o público concordar com a proposta em alguns momentos, por serem utilizados argumentos baseados em defesa ambiental e na conquista de uma imagem socialmente aceitável.

Rapidamente se nota que ali pode estar nascendo uma seita. O grupo vive o conceito de “alimentação consciente” como o elemento que os torna parte integrante de alguma coisa (algo que, como sabemos, todo adolescente deseja). 

A expressão doce da professora Novak contrasta com os temas que a obra tenta pincelar (bulimia, distanciamento dos pais e falta de capacidade dos jovens para contestar verdades consolidadas). 


E a adesão dos jovens é tanta que, eles mesmos, se tornam multiplicadores daquelas regras, pressionando e excluindo quem não segue a cartilha. A repulsa que o público vai experimentando ao longo do filme vai sendo dissolvida no núcleo familiar do aluno bolsista, que inicialmente não adere àquela proposta e come livremente. 

O personagem Ben (vivido por Samuel DeClan Anderson) escolheu participar daquela disciplina para obter a pontuação necessária para uma bolsa integral na escola. Filho de mãe solteira, é pelo alívio financeiro da mãe (papel comovente de Amanda Lawrence), que ele se permite seguir a manada. A mãe de Ben é o ponto de sensatez na obra. E ela invade, com cores e verdade, o ambiente alienado e asséptico dos pais ricos. 


E aí a acidez da diretora Jessica Hausner ganha mais volume. A posição da educadora, a falta de capacidade cognitiva dos pais e a forma escolhida para tentar resgatar os filhos daquela lavagem cerebral expõem uma realidade social que parece ter escala mundial. E é preciso ter estômago pra encarar essa mensagem (e algumas cenas finais também). 

Na construção da história dessa seita, na qual o ato de fé consiste em abrir mão daquilo que nos mantém de pé, vivos, a diretora volta seus olhos para a religião, para provocar o espectador com uma das obras mais conhecidas de toda a história. Resta saber se o público vai engolir essa brincadeira. 


Ficha técnica:
Direção:
Jessica Hausner
Distribuição: Pandora Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h50
Classificação: 18 anos
Países: Alemanha, Áustria, Catar, Dinamarca, França, Reino Unido
Gêneros: drama, suspense

12 março 2024

"As 4 Filhas de Olfa" mergulha na vida de uma mulher tunisiana

Indicado ao Oscar, documentário dirigido por Kaouther Ben Hania é baseado em um caso real ocorrido em 2010
(Fotos: Atomicalab/Divulgação)


Silvana Monteiro


Está em cartaz no Una Cine Belas Artes, o documentário "As 4 Filhas de Olfa" ("Les Filles d'Olfa"), dirigido por Kaouther Ben Hania (“O Homem que Vendeu Sua Pele” - 2020). Baseado em um caso real ocorrido em 2010, ele mergulha na vida da tunisiana Olfa Hamrouni, que teve quatro filhas, mas, misteriosamente, as duas mais velhas desapareceram. 

O filme adota uma abordagem única ao mesclar realidade e ficção, convidando três atrizes profissionais para interpretar a mãe e duas das filhas, permitindo uma exploração emocional e psicológica mais profunda dos eventos narrados. 

Vencedor do prêmio Golden Eye de Melhor Documentário do Festival de Cannes em 2023, foi um dos indicados ao Oscar 2024 na mesma categoria e tem 95% de aprovação da crítica no Rotten Tomatoes. 


Hend Sabri interpreta Olfa com uma profundidade que traz à tona reflexões sobre o feminino, maternidade, violência e complexidade das relações familiares, religião e perspectiva sociopolítica. Nour Karoui e Ichraq Matar fazem os papéis das filhas mais velhas.

Segundo a diretora, a ideia para o documentário surgiu em 2016, quando estava terminando outro projeto. A história de Olfa, que circulava na mídia na época, a deixou intrigada e emocionada. Logo, entrou em contato para convencê-la a participar de um documentário sobre sua vida. O projeto, no entanto, sofreu dificuldades e quase não foi finalizado.


Nas primeiras filmagens, que ocorreram apenas com Olfa e suas duas filhas mais jovens, Kaouther Ben Hania percebeu que não estava capturando um momento genuíno da história daquela família. Ela, então, pausou o projeto, e retornou anos depois com três atrizes — Nour Karoui, Ichraq Matar e Hend Sabri — para interpretar as filhas desaparecidas e a própria Olfa, respectivamente.

A decisão da diretora de incluir as três atrizes no documentário foi inovadora e reforça a originalidade da obra, possibilitando trocas emocionais intensas entre as seis protagonistas, algo como olhar-se no espelho ou ver-se com distanciamento, principalmente em relação à genitora.

A narrativa envolvente aborda temas como sonhos, crenças, revoltas, violência, transmissão e irmandade, questionando os valores e a estrutura da sociedade. Kaouther habilmente tece uma história que não apenas explora o desaparecimento das filhas, mas contextualiza-o na narrativa humanossocial, discutindo temas como fundamentalismo religioso, liberdade feminina, intergeracionalidade e conflito entre tradição e modernidade.


A fotografia impressiona, capturando a beleza e complexidade da Tunísia, refletindo a intensidade intimista e emocional dos personagens. A escolha de cenários e a maneira como as cenas são filmadas contribuem para a atmosfera envolvente e impactante do documentário.

"As 4 Filhas de Olfa" apresenta uma narrativa forte e comovente que vai além do tradicional documentário, ao explorar as nuances emocionais e psicológicas de sua história e ao ampliar vozes e identidades. 

É uma obra que não apenas informa, mas também emociona e provoca reflexão, tornando-se uma experiência cinematográfica marcante, tanto para amantes do gênero Doc. , quanto para pessoas que querem conhecer esse tipo de narrativa.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Kaouther Ben Hania
Distribuição: Synapse Distribution
Exibição: sala 3 do Una Cine Belas Artes (sessão 14 horas)
Duração: 1h47
Classificação: 14 anos
Países: Turquia, Alemanha, França, Arábia Saudita
Gêneros: drama, documentário

30 setembro 2023

“Marinheiro das Montanhas” e “Nardjes. A” lançam olhar poético sobre a memória e o futuro da Argélia

Novos longas de Karim Aïnouz chegam simultaneamente às telas dos cinemas brasileiros (Fotos: Divulgação)


Carolina Cassese
Blog no Zint

Já há algum tempo que, em entrevistas concedidas à imprensa, Karim Aïnouz ("O Céu de Suely" - 2006, "Praia do Futuro" - 2014, "A Vida Invisível" - 2019) vez ou outra deixava escapar detalhes de um projeto: o de registrar uma jornada de descobertas a serem feitas in loco no país responsável por 50% de seu DNA: a Argélia. Colocado em prática, o trabalho chega agora às telas dos cinemas brasileiros com o título "Marinheiro das Montanhas". 

A novidade é que a produção (que, no Brasil estreou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tendo sido exibido anteriormente no Festival de Cannes, fora da competição oficial) entra em circuito junto com outro longa assinado por Aïnouz: "Nardjes A.". 

Os dois filmes podem ser conferidos na sala 3 do Una Cine Belas Artes, o primeiro com sessão às 20h40 e o segundo com sessão às 15h50.


Nascido em Fortaleza, Karim Aïnouz é fruto da relação de uma brasileira - de nome Iracema - com um argelino, Majid. Os dois se conheceram nos Estados Unidos, mais precisamente no estado do Colorado, no início dos anos 1960. No entanto, o casal acabou se separando e Karim só foi conhecer o pai no começo da vida adulta. 

Iracema faleceu em 2015 e o genitor do cineasta mora há tempos na França, tendo tido uma filha - Kamir - do casamento com uma francesa. Vale dizer que Kamir Aïnouz também é cineasta e esteve no Brasil em 2021 para lançar o filme "Charuto de Mel".


Sobre "Marinheiro das Montanhas", é importante destacar que, ao partir para a terra natal do pai, Karim decide ir sem a companhia dele. E em vez de optar pela comodidade de viajar em um avião, prefere fazer a travessia - partir de Marselha - rumo a Argel, por mar. A viagem foi realizada em 2019, quando Aïnouz estava com 54 anos.

O desembarque se dá na capital do país, mas o objetivo principal é chegar na Cabília, a cidade natal de seu pai. Durante todo o percurso, o espectador se depara com as lembranças da infância e da juventude de Karim, narradas por ele próprio, intercaladas com as descobertas do cotidiano de um país que, embora entranhado em sua existência, era ainda bastante desconhecido para ele. Aïnouz não hesita em registrar cenas e figuras com as quais se depara aleatoriamente, pelas ruas ou estabelecimentos comerciais.


Em Cabília, ele logo percebe que seu sobrenome é bastante comum por lá (o diretor chega a encontrar um homônimo na visita). Karim acaba sendo identificado como o filho de Majid, e, assim, entra em contato com parentes, que abrem as portas de suas casas para o visitante adentrar seus domínios. 

Nesta visita à própria história, a narração do diretor conduz o espectador tanto para o interno de sua mente quanto para o que está se descortinando diante de seus olhos.


Ainda sobre sua condução, é interessante o exercício que o cineasta faz ao imaginar como seria a vida do “Karim ao contrário”, ou seja, como teria sido passar a vida toda na Argélia e decidir conhecer Fortaleza aos 54 anos. 

Bastante explorado em narrativas sobre migrações, o tema do “sujeito dividido” ganha um tom poético e inventivo em “Marinheiro das Montanhas”.

Ao fim do longa, é difícil não se lembrar também de Maïwenn Le Besco, atriz francesa de origem igualmente argelina que, poucos anos atrás, lançou o filme "DNA", exibido no Brasil. Neste filme, ela interpreta Neige, personagem que também vai atrás de suas raízes na Argélia (nesse caso, trata-se de uma ficção).


Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Produção: Videofilmes e coprodução Globo Filmes e Globo News
Distribuição: Gullane
Duração: 1h38
Exibição: sala 3 do UNA Cine Belas Artes, com sessão às 20h40
Classificação: 12 anos
Países: Brasil, Alemanha, França, Argélia e Qatar

"Nardjes A."

Já o longa "Nardjes A.", o outro lançamento do diretor, opta por um recorte referente à mesma Argélia: os protestos populares nas ruas de Argel, contrários ao então presidente Abdelaziz Bouteflika (1937-2021), que estava no poder há mais de 20 anos. 

No filme, de 2019, Karim acompanha um dia na vida da jovem argelina que batiza o filme em meio a todo o movimento que o surpreendeu na visita ao país.

A protagonista representa, pela câmara de Aïnouz, os milhares de jovens que, em vários países árabes, se encontraram (encontram) em praças e ruas para clamar por mudanças. Sob a pressão dos protestos, Bouteflika acabou renunciando.


"Nardjes A." foi exibido no Festival de Cinema de Berlim na edição 2020. Neste projeto, Karim, usando um smartphone, consegue obter imagens impressionantes. 

Ao mostrar a juventude, ele imagina um futuro que pode ser diferente daquele no qual foi gerado, quando a figura da mulher sofria opressões mais severas. Dessa maneira, junto a uma declaração de amor à mãe, ele saúda as novas mulheres, representadas por Nardjes.


No material relativo ao filme, enviado à imprensa, Karim declara: "Assim que conhecemos Nardjes, à época com 26 anos, de alguma forma reconhecemos o filme. A princípio o que me atraiu foi a possibilidade de, através de sua vida, capturar uma visão mais subjetiva do que estava acontecendo. Filmar essas 24 horas ao seu lado foi a maneira como conseguimos nos aproximar do significado do que estava acontecendo nas ruas".

O diretor falou ainda sobre a sua intenção de realizar um filme "ousado, alto, barulhento, rápido e voraz", que representasse o tom das manifestações: “As manifestações de Argel ressoam além da Argélia. Elas mostram uma geração que teve seu futuro roubado, mas ainda encontra na esperança um lugar fértil para imaginar o amanhã". 

As reflexões presentes nos dois filmes, portanto, não se limitam ao território argelino: há muito o que reconstruir nestas terras, do outro lado do oceano.


Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Coprodução: Canal Brasil, Watchmen Productions (Alemanha), MPM Film (França), Show Guest Entertainment (Argélia) e Instituto de Cinema de Doha (Qatar)
Distribuição: Gullane
Duração: 1h20
Exibição: sala 3 do UNA Cine Belas Artes, com sessão às 15h50
Classificação: 10 anos

23 agosto 2023

Comovente, filme “Retratos Fantasmas” reflete sobre a interseção entre cinema, espaço e sociedade

Novo documentário de Kleber Mendonça Filho ilustra as consequências do trator da modernidade 
(Fotos: João Carlos Lacerda/Primeiro Plano)


Carolina Cassese
Blog no Zint


Depois de três longas-metragens ficcionais que obtiveram recepção calorosa da crítica e o reconhecimento de premiações renomadas - "O Som ao Redor" (2012), "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019) - Kleber Mendonça Filho tem seu nome mais uma vez inserido na lista das estréias de cinema com "Retratos Fantasmas".

O filme entra em cartaz, simultaneamente no Brasil e Portugal, nesta quinta-feira (24). A primeira exibição do longa no país aconteceu durante a noite de abertura do 51º Festival de Cinema de Gramado, em sessão única fora de competição. Em outubro, será lançado nas salas da Espanha e, em novembro, nos cinemas da França e Estados Unidos. 

Cine São Luiz 

No documentário, memórias familiares se misturam à história de Recife, cidade na qual o diretor, produtor, roteirista e crítico de cinema brasileiro nasceu há pouco mais de 58 anos. 

O resultado é um filme forte e carregado de uma emoção que não é de modo algum forçada, mas inevitável diante da sucessão de acontecimentos a que o espectador assiste. Inegavelmente, há um sentimento de impotência diante desse mundo que avança como um trator rumo ao novo.

Narrado pelo próprio diretor, o longa é dividido em três partes. A primeira, “O apartamento de Setúbal”, é centrada na casa em que o recifense cresceu. O mesmo lugar serviu como cenário de vários trabalhos assinados por Mendonça Filho, como o já mencionado "O Som ao Redor". 


Aqui percebemos como realidade e ficção se entrelaçam, já que acontecimentos daquele cotidiano inspiraram ideias presentes nas obras do diretor. Uma frase dessa primeira parte ecoará por toda a obra: “O tempo transforma os lugares”. E como transforma. 

No bloco subsequente, intitulado “Cinemas do Centro de Recife”, acompanhamos como esse local sofreu importantes modificações ao longo dos anos. É a história de muitos centros brasileiros: representantes do capital passam a se interessar por outras áreas da cidade, geralmente menos acessíveis e democráticas. 

As zonas centrais então abandonadas pelo poder público e também por boa parte da sociedade, como pontua o diretor - “conheço jovens que nunca foram ao centro”.

Cine Veneza 

É também nesse momento do longa que vemos imagens de antigos cinemas de rua, que costumavam ser pontos de efervescência cultural. Como de costume, Mendonça Filho tem excelentes sacadas, como a sugestão de que os letreiros dos cinemas comentavam a situação política do país e, ainda, enviavam mensagens enigmáticas. 

Há também pontuações que ilustram a histórica (e ainda muito atual) desvalorização do cinema nacional - em detrimento de grandes distribuidoras estadunidenses.

Diante da demanda por uma cidade mais “moderna” e “funcional”, que atendesse aos interesses de grandes empresários, a maioria dos estabelecimentos independentes precisou fechar as portas. 

Essa história também se repetiu em muitos outros centros brasileiros: o cinema sai da rua e migra para o shopping center, o espaço do consumismo - se não bastasse, a própria indústria cinematográfica se torna mais e mais comercial. 

Centro de Recife 

No filme, Mendonça Filho mostra imagens de um shopping que foi construído em volta de um cinema antigo: “Essa coisa se alojou dentro do (Cinema) Veneza, como um organismo alienígena. E o cinema virou o hospedeiro”. 

No dia a dia, as ruas do centro vão ficando cada vez mais abandonadas. Como pontua uma personagem do longa “A Árvore, O Prefeito e a Mediateca” (1993), de Éric Rohmer: “Às vezes, a modernidade pode ser muito limitada”.

Em “Igrejas e Espíritos Sagrados”, o último bloco do documentário, há uma alegoria sobre símbolos religiosos, fantasmas e as ilusões do cinema. A última cena surpreende e, ao mesmo tempo, dialoga com várias outras discussões presentes na obra. 

Bilheteira de cinema

Esse é um dos principais méritos do trabalho de Mendonça Filho: seu documentário é extremamente coeso, conduzido por elementos fantasmagóricos (luzes piscando, vultos, desaparecimentos) e reflexões sobre o abandono.

Ao vermos o filme, nos damos conta de que as ruínas também contam histórias. Afinal de contas, muito pode ser inferido acerca de uma sociedade que troca cinemas por shoppings centers ou redes de farmácias. 

Em tempos de tanta correria, “Retratos Fantasmas” nos convida para uma pausa. É hora de olharmos para os escombros e refletirmos sobre o que ainda pode ser resgatado.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho
Produção: CinemaScópio / Vitrine Filmes
Distribuição: Vitrine Filmes
Exibição: no Cineart Ponteio, Minas Tênis Clube/Unimed, Uni Cine Belas Artes
Duração: 1h31
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

31 maio 2022

"Romy, Femme Libre" mostra lado combativo de Romy Schneider, ícone do cinema europeu

Documentário foi um dos primeiros apresentados no 75ª edição do Festival de Cannes (Foto: Cannes Classic/Divulgação)


Carolina Cassese
Correspondente em Cannes


"Ao falar sobre Romy Schneider, geralmente as pessoas comentam sobre sua beleza. (...) Mas ela foi muito mais do que bonita". É esse comentário do narrador que abre o longa "Romy, Femme Libre" ("Romy, Mulher Livre"), um dos primeiros documentários a serem exibidos na 75ª edição do Festival de Cannes. “Eu queria me livrar da beleza de Romy Schneider. Por isso quis começar o documentário com a frase ‘Sempre começa com sua beleza.’ Uma vez que já colocamos isso, podemos entrar em nossa história”, explicou Lucie Cariès, que assina o filme junto com Clémentine Deroudille. 

As duas estavam presentes na pré-estreia do longa, que aconteceu em 18/5, no Palácio do Festival. Emocionada, Deroudille fez um agradecimento especial à emblemática Cinemateca Francesa, instituição que atualmente apresenta uma exposição sobre Schneider, idealizada justamente por ela. 

Lucie Cariès e Clémentine Deroudille (Photocall Cannes)

A diretora destacou que sentiu raiva ao realizar as pesquisas sobre a atriz. “Principalmente quando vi a maneira que a mídia falava sobre ela e a falsa leitura que apresentavam não apenas de Romy, mas de várias atrizes”. Para Deroudille, as narrativas veiculadas são muito focadas na aparência e apagam aspectos relevantes da trajetória das mulheres. 

Tanto o filme quanto a exposição, que fica em cartaz até 31 de julho, mostram um outro lado de Schneider, que foi um ícone do cinema europeu. Em primeiro lugar, o documentário privilegia uma visão de “Romy por ela mesma”, justamente por exibir inúmeros trechos, em sua maioria inéditos, de entrevistas da alemã que se naturalizou francesa. 


Ouvimos sobre suas angústias em tomar decisões, o tédio que a dominou depois de passar algum tempo como dona de casa, a frustração que sentiu com o cinema hollywoodiano. Fica evidente que a atriz tinha personalidade - e se arriscava com frequência.

Considerando que a proposta era se afastar do “olhar estereotipado dos outros” acerca de Schneider, o documentário acerta em mostrar primordialmente falas da própria atriz, e não de terceiros. Ao vermos ainda trechos de seus emblemáticos filmes, como "Sissi" (1955) e "As Coisas da Vida" (1979), temos a dimensão do talento da atriz e de como aqueles longas realmente marcaram uma época.

"Sissi" (Divulgação)

Inevitavelmente, a produção promove uma reflexão sobre o universo das celebridades e a pressão exercida em especial sobre as mulheres. Mesmo uma figura como Schneider, que era discreta e não fazia exatamente parte do universo hollywoodiano, foi alvo de muitos comentários acerca de seu corpo e de sua vida pessoal. 

A todo tempo, a atriz se esforçava para mostrar que poderia ser muito mais. Corria atrás de diretores, propunha projetos, topava se deslocar. “Romy era assim: uma mulher que não tinha medo de deixar lugares e homens para recomeçar sua vida em outro lugar”, conclui o narrador.

Exposição Romy Schneider (fotos Carolina Cassese)






A exposição em cartaz na Cinemateca Francesa também destaca o lado combativo da atriz. Um dos painéis mostra o seguinte pedido de Schneider para o diretor Claude Sautet: “Me faça um bom filme de mulher”. O que ela queria dizer com isso? Um filme em que as mulheres não são mais um objeto para os homens, mas sim estariam no comando da própria vida, decidiriam abortar, deixariam os homens com quem viviam porque querem ser livres. 

"Uma História Simples" (Divulgação)

O resultado de sua solicitação foi o longa "Uma História Simples", que inclusive lhe valeu o prêmio César de Melhor Atriz, em 1979. Na produção, Schneider contracenou com nomes como Sophie Daumier, Francine Bergé, Eva Darlan e Arlette Bonnard. Foi, definitivamente, um bom filme de mulher. 


 Ficha técnica:
Direção: Lucie Cariès
Roteiro: Lucie Cariès e Clémentine Deroudille
Duração: 1h31
País: França
Gênero: documentário