Através de quatro líderes sociais, diretora expõe a segregação racial nos anos 1960 (Fotos: Amazon Prime Video/Divulgação) |
Silvana Monteiro
A premiada atriz Regina King marca sua estreia como diretora
de cinema com "Uma Noite em Miami" ("One Night in Miami"),
produção original da Amazon Prime Video. Embora já tenha experiência na direção
de séries de TV, King abraçou o desafio de dirigir um roteiro adaptado da peça
teatral de mesmo nome, de autoria de Kemp Powes, responsável também pelo
roteiro do filme, indicado ao Oscar 2021 nas categorias de Melhor Roteiro
Adaptado, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Canção Original.
O enredo prima pela humanização absoluta de quatro líderes
sociais da luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Nesse quesito, é bem
possível que o telespectador fique tentado a fazer uma comparação entre as
condutas e diálogos retratados no filme à luta antirracista dos dias atuais. É
pulsante na trama a tentativa de individualizar e desmitificar as
personalidades.
O filme retrata o encontro real entre o pugilista Cassius
Clay (que mais tarde mudaria o nome para Muhammad Ali) interpretado por Eli
Goree; o cantor de soul, Sam Cooke, vivido por Leslie Odom Jr.; o jogador de
futebol americano Jim Brown, representado por Aldis Hodge, e Malcolm X, um
dos defensores do Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, fundador da
Organização para a Unidade Afro-Americana, de inspiração separatista, aqui
encenado por Kingsley Ben-Adir .
Esta análise é importante porque transmite uma mensagem
social, que parece óbvia, mas que é ainda muito necessária no combate à visão
racista. Mesmo que impulsionados por um mesmo ideal, ainda que ativistas na
mesma batalha, pessoas negras não são objetos, e muito menos são produtos de
uma escala industrial. Cada indivíduo pensa, age, luta e se movimenta de modo
diferente ante aos conflitos e gatilhos provocados pelo racismo.
O filme é extremamente discursivo e, por isso, pode cansar o
telespectador indisposto a longos e complexos diálogos. São praticamente duas
horas de uma imersão psicossocial e histórica na vida dos quatro ídolos,
desenvolvida a partir da interlocução entre os personagens retratados.
Depois de Cassius Clay (Muhammad Ali) vencer o campeão dos
pesos pesados Sonny Liston, no Miami Convention Hall, ele se reúne com Sam
Cooke, Jim Brown e Malcolm X no quarto do Hampton House Motel, no bairro de
Overtown, em Miami para uma comemoração intimista.
O encontro num local privado
não foi uma escolha pura e simples, mas um instinto de sobrevivência. Afinal,
por causa das chamadas "leis de Jim Crow" de segregação racial, Cassius
Clay não podia ir aos clubes ou bares da região comemorar a vitória nos
ringues, por isso o melhor foi se refugiar na hospedagem.
Ao mostrar virtudes e fraquezas dos personagens, o autor nos
remete a uma experiência de observação e, ao mesmo tempo, à compreensão das
marcas deixadas pela segregação e o ímpeto de se manterem vivos na luta contra
o preconceito racial.
Uma dica para as pessoas mais jovens que desconhecem a
história desses ícones, é pesquisar um pouco sobre cada um deles antes de
assistirem ao drama, uma vez que o filme se passa no ano de 1964. Sam Cooke foi
assassinado 10 meses mais tarde, em incidente suspeito e, no ano seguinte, em
fevereiro de 1965, Malcolm X levou 13 tiros enquanto discursava no Harlem.
Muhammad Ali morreu em 2016, aos 74 anos, de problemas respiratórios. Jim Brown
está vivo e fez 85 anos em fevereiro.
Terence Blanchard ("Destacamento Blood") é o
responsável por uma primorosa trilha sonora recheada de black music, sobretudo
blues e soul, com destaque para a belíssima canção "A Change Is Gonna
Come" e, claro, para “Speak Now”, faixa original escrita por Leslie Odom
Jr. e Sam Ashworth.
A fotografia também chama a atenção ao provocar no
telespectador a sensação de que está empunhando a câmera e observando os fatos
ocorridos naquele encontro noturno de 1964.
Mais do que nunca, "Uma Noite em Miami" é um filme
necessário e mesmo tendo se passado há quase 60 anos daquela reunião, sua
temática é real e urgente. E nos leva a desejar tantas noites mais como a
mostrada na obra, seja em Miami, Nova York, BH ou em qualquer lugar em que o
racismo ainda se mostra uma ameaça sufocante e letal.
Claro, sem romantizar o
fato de que ao invés de simplesmente comemorarem livres, leves e soltos, esses
homens foram levados a pensar sobre um futuro que mal sabem eles, embora com
muitas conquistas, ainda não aconteceu de forma plena.
Direção: Regina King
Exibição: Amazon Prime Video
Duração: 1h54
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gênero: Drama