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04 setembro 2024

Pioneirismo, revelações e histórias de racismo fazem de “Othelo, o Grande” um documentário imprescindível

Longa dirigido por Lucas Rossi levou dez anos para ficar pronto e procura intercalar a vida pessoal e a
carreira do ator (Fotos: Davi G. Goulart)


Mirtes Helena Scalioni


Pode parecer, a princípio, que o grande mérito do documentário de Lucas Rossi seja mostrar às novas gerações o tamanho da importância do comediante Grande Otelo (1915-1993). Mas não é só isso. 

Quem teve oportunidade de acompanhar a carreira do ator, vai ficar sabendo um pouco mais sobre a vida desse homem múltiplo, nascido em Uberlândia, chamado Sebastião Bernardes de Souza Prata. “Othelo, O Grande” estreia nos cinemas em Belo Horizonte no dia 5 de setembro.


Narrado pelo próprio artista em primeira pessoa, o documentário que, segundo o diretor, levou dez anos para ficar pronto, procura intercalar fatos da vida pessoal atribulada de Sebastião com sucessos de sua carreira. Principalmente quando ele era contratado da Atlântida e lotava os cinemas do país com suas saborosas chanchadas. 

O lado ruim desse jeito de contar a história é que o espectador não fica conhecendo casos e características de Grande Otelo vividos e percebidos pelas pessoas que conviveram com ele.


Embora misture vida pessoal e trabalho, o filme peca também por não localizar a época dos fatos. Num momento o homem está chorando por causa de suas tragédias familiares e, no próximo minuto, o artista está em cena rindo e fazendo rir. Faltam referências, datas. 

O longa tem a participação especial da atriz Zezé Motta como narradora e traz imagens raras de arquivo, feitas em pesquisas na Cinemateca Brasileira.


Uma curiosidade revelada no filme, e que talvez a maioria do público não saiba, é o motivo pelo qual o pequeno Sebastião Prata passou a ser conhecido – até internacionalmente – como Grande Otelo. 

Homem de muitos talentos, ia fácil do drama à comédia, o artista foi também exímio compositor de sambas, alguns deles presentes no documentário, com destaque especial ao histórico e nostálgico “Praça Onze”, parceria com Herivelto Martins.


Produzido pela Franco Filmes, “Othelo, o Grande” tem parceiros poderosos na produção como Globo Filmes, RioFilme, Canal Brasil e Globonews. A princípio, isso facilitaria a divulgação e exibição do trabalho, que já foi vencedor do Prêmio Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio.

Careteiro e de humor mais escrachado, o comediante faz questão de salientar, em suas falas, as participações em filmes fora do circuito da chanchada. Trabalhou com diretores ditos sérios como Joaquim Pedro de Andrade, Werner Herzog, Nelson Pereira dos Santos e até o norte-americano Orson Welles. Afinal, foram mais de 100 filmes.


Neto de escravos e órfão, Sebastião comeu o pão que o diabo amassou, desde que se mudou para o Rio de Janeiro acompanhando uma companhia teatral que passou por Uberlândia. 

Não por acaso, o documentário é todo permeado por questões raciais, evidenciando as humilhações que o ator viveu até ser o primeiro protagonista negro do cinema brasileiro. Em muitos deles, quando chegava para trabalhar, Grande Otelo tinha que entrar pela porta dos fundos por causa de sua cor.


Ficha técnica:
Direção: Lucas H. Rossi
Produção: Franco Filmes, em coprodução com Globo Filmes, GloboNews, Canal Brasil e RioFilme
Distribuição: Livres Filmes
Exibição: Centro Cultural Unimed BH - Minas
Duração: 1h22
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

23 abril 2022

"Medida Provisória": entre o radicalismo e a resistência negra

Seu Jorge e Alfred Enoch protagonizam a produção dirigida por Lázaro Ramos que aborda o racismo numa sociedade futura (Fotos: Divulgação)


Marcos Tadeu


Impactante. Essa é a palavra que resume "Medida Provisória", longa dirigido por Lázaro Ramos, que fez sua estreia nos cinemas no dia 14 de abril. A produção mostra que o ator e agora diretor vem com tudo para tratar da questão racial em um governo totalitário e radical. A obra é inspirada na peça brasileira "Namíbia, Não!", de Aldri Anunciação (que divide o roteiro do filme com o diretor e Lusa Silvestre), dirigida em 2011 no teatro por Lázaro Ramos.

Na história, somos imersos em um Brasil que no primeiro momento oferece, por meio de uma Medida Provisória, uma reparação pelos longos anos de escravidão aos quais os negros foram subjugados por mais de três séculos para voltarem ao país de sua ancestralidade. Ao confirmar que existe uma resistência dos negros, chamados de “melanina acentuada”, existe, o governo passa a impor uma caçada racial e a mandá-los de volta à força.


Primeiro ponto a se elogiar aqui é a força de Antônio (Alfred Enoch), que consegue expor as dores e lutas de um negro em um país completamente racista e intolerante. O protagonista exala vigor e, ao mesmo tempo, consegue mostrar suas fragilidades e o medo do perigo que corre. Ele se torna símbolo de resistência por ser o único “melanina acentuada” a resistir.

Do outro lado temos André (Seu Jorge), jornalista do bairro local que questiona sua realidade e que não aguenta ficar parado sem agir. Ele representa mais o lado da emoção, mas também a necessidade de agir em uma situação de caos. André e Antônio têm uma química muito boa em tela. Ver os dois juntos, se divertindo enquanto atuam, é de deixar o brasileiro orgulhoso.


O grotesco lado racista é representado por ninguém menos que Adriana Esteves e Renata Sorrah que conseguem ser enérgicas e causar raiva no telespectador. Incomoda o fato de Esteves pegar nos últimos anos papeis muitos parecidos que pouco se distanciam de suas vilãs icônicas. Já Sorrah interpreta uma moradora do prédio de Antônio e André e se destaca por suas falas absurdas, como a de sofrer racismo por ser branca ou pela cor do seu cabelo.


Lázaro Ramos consegue dar uma aula sobre como o racismo estrutural é vivo e forte em uma sociedade distópica. Em certo momento do filme vemos como Capitu (Tais Araújo), mulher de Antônio, médica e que se descobre grávida, é caçada por ser negra. Somente quando consegue abrigo em um afro-bunker a personagem expõe e desabafa todo o cansaço de ser negra e sempre ter que resistir ou ser forte. Um discurso potente que choca o telespectador com uma dose cavalar de realidade que os negros passam o tempo todo.

Sem dúvida, "Medida Provisória" fala sobre a necessidade de resistir em uma sociedade do radicalismo e das leis que não pensam duas vezes em tornar a população cada vez mais branca. Ficam algumas perguntas: E se a sociedade fosse completamente branca? O que aconteceria aos negros? O filme aponta e expõe esses questionamentos de maneira clara e objetiva, vai direto ao ponto. O diretor mostra sua força e todo o cuidado que tem ao lidar com a cultura negra e os negros no Brasil.


O único ponto negativo do filme é que ele propõe uma solução rápida no final com pouco tempo de tela após tudo o que foi trabalhado ao longo da obra. Se fossem acrescidos alguns minutos para mostrar essa reviravolta, o longa ganharia mais brilho.

“Medida Provisória” escancara um país racista que não sabe ainda lidar com os negros, mas que também consegue resistir ao mostrar toda a força da cultura negra e o cuidado com a raça. Sem dúvida, eles se sentirão representados em seus dilemas e suas alegrias. Por outro lado, é um alerta para que os brancos passem a vigiar suas posturas e não repitam comportamentos racistas. Reforço: trata-se de um filme bem impactante, que cabe uma reflexão séria.


Ficha técnica:
Direção: Lázaro Ramos
Produção: Lereby Produções / Lata Filmes / Globo Filmes
Distribuição: Elo Company
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h34
Classificação: 14 anos
País: Brasil
Gênero: drama

02 dezembro 2021

Da infância conturbada à glória no tênis, "King Richard: Criando Campeãs" conta a história das irmãs Williams

Baseado em fatos reais, o drama trata da persistência de um pai em transformar suas filhas em lendas num esporte elitizado (Fotos: Warner Bros. Pictures)


Marcos Tadeu
@Prosa&Cultura

 
“King Richard: Criando Campeãs” funciona como um bom longa motivacional ao mostrar a força e a garra das irmãs tenistas Serena e Vênus Williams em meio a uma época de racismo e um pai abusivo. Na história conhecemos Richard Williams (Will Smith), um pai batalhador, esforçado, que vê a chance de tornar suas filhas Vênus (Saniyya Sidney) e Serena (Demi Singleton) em atletas renomadas do tênis, o que acabou acontecendo. O filme estreia nesta quinta-feira (2) apenas nos cinemas.

Em um primeiro momento, o filme busca apresentar o drama de Richard: as tarefas domésticas, as dificuldades financeiras e como conciliar tudo isso com seus dois empregos, de faxineiro na quadra do bairro e segurança em uma firma. Ele começa a desenvolver conhecimento e habilidades no tênis lendo e assistindo partidas na TV.


A partir daí, percebe que suas filhas têm um grande potencial para se tornarem atletas de peso nesse esporte, praticado em 90% por brancos. Seu maior desafio é fazer com que Vênus e Serena sejam treinadas por técnicos que as ajudem a buscar seu objetivo. É interessante ver que as camadas do longa são bem definidas pelo diretor Reinaldo Marcus Green, deixando o telespectador contextualizado sobre o que viria. Além do fato de apresentar uma família de negros e toda questão racial em torno disso e do esporte em si.


Em um segundo momento notamos os métodos nada convencionais de Richard treinar as filhas. Até mesmo na forma como ele bate de frente com os técnicos que aparecem para ajudar as irmãs Williams. A relação do personagem principal, título do filme, com os treinadores é conturbada. Muitas são as vezes em que ele tenta ensiná-los como trabalhar. Isso se repetiu com os dois técnicos - Rick Macci (Jon Bernthal) e Paul Cohen (Tony Goldwyn).

O filme aqui decide ir por caminhos que ficam entre o tom de comédia e o drama. Ao mesmo tempo em que Will Smith interpreta um pai preocupado e zeloso com as filhas, muitas vezes peca pelo excesso em cobrar perfeição das jovens. Os desafios de guiá-las dentro de quadra, mesmo com a presença de um técnico, muitas vezes geram atritos e até situações de racismo.


Em grande parte da narrativa há uso excessivo de frases de efeito, principalmente em relação a Serena e Vênus, reforçando a ideia de que elas vão conseguir alcançar seus objetivos jogando tênis. Tanto os técnicos, como a família incentivam as atletas a não desistirem até alcançarem o sucesso. 

Até certo ponto isso funciona, porém, usado em excesso faz parecer que soa forçado. A relação das irmãs com as quadras e o tempo também são importantes para mostrar o desejo de se ter um esporte na vida e de torná-lo profissão. Vênus, claro, é a maior atração e isso fica bem visível durante toda narrativa.


Outro aspecto positivo é a parte técnica - figurino, cabelo e maquiagem. Um trabalho bastante cuidadoso. Ao comparar imagens reais de Richard, Vênus e Serena Williams com as dos atores, tudo é muito verossímil e próximo do real. Um ótimo ponto que conecta o telespectador ao contexto da época e dos fatos narrados. Sucesso também na trilha sonora, que conta com a música “Be Alive” interpretada pela cantora Beyoncé.


Destaco também a atuação de Will Smith, mesmo que o personagem me incomode em alguns aspectos. No geral, ele é um pai abusivo que, mesmo quando não decide colocar pressão em suas filhas, faz de tudo para dar lições de humildade. Mas não é nem um pouco humilde como pessoa e fica visível a sua pretensão maior por Vênus do que por Serena. 

Fora o fato de que muito tem de ser feito pela família apenas para satisfazer a vontade e o ego de Richard. Todas as mulheres da casa são silenciadas ou pouco ouvidas. O personagem age como um rei. Não acho que um Oscar para Will Smith seja merecido, pois pode soar como um reforço a esse tipo de comportamento abusivo do pai.


Senti falta de explorar melhor outros fatores externos como a relação de Richard com a esposa Oracene “Brandi” Williams (papel de Aunjanue Ellis, que está excelente), os problemas financeiros, as filhas na escola e o fato de serem negras.

Infelizmente, a questão do racismo em si deixou muito a desejar, apesar de todos os membros da família serem negros e sofrerem muito com isso. Ficou uma abordagem rasa, sem aprofundar, o que causa estranhamento, uma vez que os produtores do filme também são negros.


Vale ressaltar também que outros negros retratados em “King Richard: Criando Campeãs” são colocados como pessoas ruins e somente a família de Richard se destaca como sendo de caráter. Um exemplo disso é a cena em que ele vai ensinar sobre humildade ao exibir o filme "Cinderela", da Disney, em uma sessão em casa. Curioso é que a personagem é branca. Não havia para ele nenhum personagem negro na época para ser referência para as filhas?

A arrogância de Richard é tamanha que desconstrói o que deveria ser um ensinamento, tudo para mostrar que os Williams são um exemplo de humildade. Até mesmo com os brancos retratados o protagonista desenvolve uma relação do tipo patrão/empregado. Mesmo assim, são taxados de ruins. Ou seja, tanto negros como brancos são maus, somente a família de Richard é boa. E o entorno deles?


Serena Willians também se torna um fator complicado na narrativa. Durante todo o tempo de tela, vemos o desenvolvimento maior de Vênus e como, facilmente, ela ganha prestigio com os técnicos e, principalmente, com seu pai. Serena, em alguns momentos, dá a impressão de que vai ganhar mais protagonismo, mas acaba sendo ofuscada pelo brilho da irmã. 

Apresentar protagonistas tão fortes e invencíveis, sem um grande desafio, muitas vezes pode deixar o final bastante previsível. Apesar disso, “King Richard: Criando Campeãs” consegue apresentar um encerramento diferente do esperado, o que é um grande acerto, pois surpreende o telespectador e ainda consegue motivá-lo.


Ficha técnica:
Direção: Reinaldo Marcus Green
Produção: Warner Bros. / Star Thrower Entertainment / Overbrook Entertainment / Westbrook Inc.
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h18
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gêneros: drama / biografia

03 março 2020

"Luta por Justiça" leva ao cinema o racismo estrutural do Judiciário norte-americano

Michael B. Jordan é o advogado de Jamie Foxx nesta história, baseada em fatos reais (Fotos: Jake Giles Netter/Warner Bros. Pictures/Divulgação)

Jean Piter Miranda


Negros condenados à morte sem terem passado por um julgamento justo, com amplo direito de defesa, como prevê a lei. Um jovem advogado negro, idealista, recém-formado, que abre mão de ter uma carreira lucrativa para tentar ajudar aqueles que podem ter sido injustiçados pelo sistema. Essa é a trama central de "Luta por Justiça", novo filme do jovem diretor norte-americano Destin Daniel Cretton, estrelado por Michael B. Jordan, Jamie Foxx e Brie Larson.


Bryan Stevenson (Michael B. Jordan) é um jovem advogado negro formado em Harvard, uma das mais conceituadas universidades do mundo. Isso daria a ele a chance de ingressar em um grande escritório de Nova York, ganhar uma boa grana e seguir sua vida ao bom estilo americano. Mas, como foi dito, ele prefere dar assistência jurídica gratuita a presidiários negros que estão no corredor da morte no Alabama. O principal deles é Walter McMillian (Jamie Foxx), condenado pelo assassinato de uma adolescente branca na cidade em que vive.


A temática não é nova e é sempre retratada em filmes e séries nos EUA, com base em histórias reais. Como recentemente foi mostrado na ótima série "Olhos que Condenam", da Netflix. "Luta por Justiça" também é inspirado em um caso verídico. Isso já é o suficiente pra trazer o público para o lado dos advogados que buscam por justiça. Ao mesmo tempo, em cada cena, fica muito evidente o racismo estrutural, aquele que está enraizado nas práticas da polícia, na opinião pública e, principalmente, no sistema prisional. Por se tratar de um embate que se passa no mundo jurídico, não dá pra esperar surpresas.


Consulta de arquivos e conversas com testemunhas, em meio à hostilidade dos moradores da pequena cidade. Busca por erros na investigação, inconsistências e contradições em depoimentos, procedimentos ignorados, casos semelhantes ocorridos em outras localidades. É uma corrida burocrática contra o relógio, já que o tempo está passando para o condenado que aguarda no corredor da morte a data de sua execução. São pouco mais de duas horas de filme. O roteiro exalta Bryan e o coloca como herói perfeito.


Os outros personagens são mais humanos, com qualidades e defeitos, erros acertos, virtudes e medos. A união da comunidade negra em apoio a Walter e Bryan é um dos destaques. A disputa nos tribunais tem reviravoltas, mas nada que provoque muita emoção. As atuações são boas, condizentes com cada cena. Sem exageros, sem forçar a barra. Brie Larson é tão discreta que quase passa despercebida no filme como Eva, assistente de Bryan.

No fim, é tudo muito previsível. Não há nenhum pico de emoção. E pra não deixar pontas soltas, o desfecho de cada personagem é apresentado. Como terminaram ou como estão hoje. Cumpre assim o papel do longa, em boa dose. Nada além disso.


Ficha técnica:
Direção: Destin Daniel Cretton
Produção: Warner Bros / Endeavor Content / One Community / Participant / Macro / Netter
Productions / Outlier Society
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Duração: 2h17
Gêneros: Drama / Biografia
País: EUA
Classificação: 14 anos
Nota: 3,5 (0 a 5)

Tags: #LutaPorJustiça, @MichaelBJordan, @JamieFoxx, @BrieLarson, #drama, baseadoemfatosreais, #racismo, #BryanStevenson, @WarnerBrosPicturesBR, @cinemanoescurinho, @cinemaescurinho

25 janeiro 2019

"Green Book: O Guia" inverte os papéis para expor o racismo e a hipocrisia

Mahershala Ali é o pianista Don Shirley que contrata Tony Lip (Viggo Mortensen) para ser seu motorista e segurança durante uma turnê  (Fotos: Diamond Films/Divulgação)

Maristela Bretas


Uma jornada de conhecimento, mudança de conceitos e exposição aos preconceitos diários que mudaram pouco nos últimos 60 anos. Assim é "Green Book: O Guia", do diretor Peter Farrelly, que está como um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme, além de já ter conquistado várias premiações. Com bela fotografia, a produção segue o estilo road movie, cortando os Estados Unidos de Norte a Sul de carro e expondo o comportamento e o preconceito racial dos moradores de cada localidade por onde passa.

As mudanças são claras a cada quilômetro percorrido e valem principalmente para os personagens principais - Tony Lip (Viggo Mortensen) e Dr. Don Shirley (Mahershala Ali). O primeiro, apesar do jeito grosseirão, é um bom marido, ótimo pai, que prefere se manter afastado dos negócios escusos de amigos e familiares italianos da periferia, mas que precisa se virar para sustentar a família após perder o emprego em um cassino. 

O segundo é um homem solitário, que vive enclausurado num apartamento luxuoso em Nova York, dividido entre ser aceito pelos brancos para quem se apresenta e sem conseguir se encaixar entre os negros como ele, que na maioria das vezes são menosprezados pelos brancos. Eles terão de conviver e dividir espaços por dois meses, o que irá forçá-los a expor suas virtudes e fraquezas. A proposta deste drama, baseado na história real da amizade dos dois, é fazer pensar e levar as pessoas a reavaliarem seus conceitos de cor, raça e descendência.

Se para a dupla principal a convivência se torna um aprendizado para ambos, explorar a questão da cor em sociedades diferentes se torna algo mais difícil. Especialmente nos estados sulistas norte-americanos, onde o negro é tratado quase como escravo e mesmo no caso de Shirley, serve apenas como um entretenimento dos brancos, mas não pode usar o banheiro de uma casa ou jantar entre os brancos. Causa repulsa tais atitudes e dificilmente o público sairá indiferente às situações mostradas. Um claro exemplo está no nome do guia rodoviário entregue a Tony Lip pelo agente musical de Shirley antes da viagem: Green Book é um livro que indica quais os hotéis do sul do país que aceitavam negros como hóspedes.

Em algumas premiações,  “Green Book – O Guia” foi colocado na categoria de comédia, mas poucos são os momentos engraçados. Os diálogos, os apertos e as situações vividas pelos protagonistas se mostram muito atuais apesar de ter se passado nos anos de 1960. Tony percebe no decorrer da viagem que o preconceito a Shirley se estende também aos imigrantes como ele. Não se trata só da cor da pele, mas de raça e cultura (ou falta dela).

“Green Book – O Guia” é inspirado na emocionante história de dois homens antagônicos, cada um com seu preconceito e postura arrogante. De um lado, Tony Lip, contratado como segurança e motorista do famoso músico Dr. Don Shirley. Durante os dois meses da turnê do músico pelo sul dos Estados Unidos, eles devem seguir "O Guia" que indica os locais de hospedagem seguros para negros na região. À medida que a dupla vai descendo, cresce o racismo e as situações de humilhação, enfrentadas por Shirley, que passam a desagradar Tony. A união destes dois provocará uma profunda mudança em suas vidas.

A biografia tem também outro detalhe interessante. O roteiro foi escrito pelo diretor Peter Farrelly e Nick Vallelonga, filho de Tony Lip, que conhecia bem a história dos dois amigos que durou anos. Vale também lembrar que “Green Book – O Guia”  tem uma bela trilha sonora composta por Kristopher Bowers, principalmente nas apresentações ao piano de Shirley.

A produção recebeu cinco indicações para o Oscar 2019, todas merecidas, principalmente as de Melhor Filme, Melhor Ator (Viggo Mortensen) e Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali), cujas atuações estão excelentes e ambos deveriam estar disputando em igualdade o prêmio de Melhor Ator. O filme também foi indicado às estatuetas de Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. 

"Green Book: O Guia" já conquistou três Globo de Ouro nesse ano: Melhor Filme Comédia ou Musical, Melhor Roteiro (Peter Farrelly, Nick Vallelonga e Brian Currie) e Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali, que levou o mesmo prêmio também no Critic's Choice Awards). Em 2018, o longa foi vencedor do Festival de Cinema de Toronto. Uma avaliação: simplesmente imperdível.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Peter Farrelly
Produção: Dreamworks Pictures / Participant Media / Wessler Entertaiment
Distribuição: Diamond Films Brasil
Duração: 2h10
Gêneros: Drama / Biografia
País: EUA
Classificação: 12 anos
Nota: 4 (0 a 5)

Tags: #GreenBookOGuia, #ViggoMortensen, #MahershalaAli, #drama, #biografia, #DonShirley, #racismo, #historiareal, @DiamondFilms, @cinemanoescurinho


22 novembro 2018

"Infiltrado na Klan" escancara a hipocrisia do racismo norte-americano

John David Washington é o policial negro  que inicia uma investigação com o colega Adam Driver contra uma das maiores seitas racista dos EUA (Fotos: Universal Pictures/Divulgação)

Maristela Bretas


Três grandes nomes do cinema atual - Spike Lee, Jordan Peele e Jason Blum - se uniram para produzir e entregar um dos melhores policiais do ano - "Infiltrado na Klan" ("Blackklansman"), um filme que bate sem dó na questão do racismo, cada vez mais forte nos Estados Unidos. Baseado no livro escrito por Ron Stallworth, o policial que desmascarou um dos maiores grupos racistas norte-americanos, a Ku Klus Klan, o longa revela que de Norte a Sul do país, a perseguição racial vem se tornando mais séria a cada dia.

Assim como em "Rodney King" (produção para a Netflix de 2017), Spike Lee tem procurado mostrar em seus filmes esta questão racial, que fez despertar também os movimentos de oposição promovidos por aqueles que sofrem ao longo dos anos. Apesar de ser um assunto sério, o diretor consegue mesclar no filme bons momentos cômicos para mostrar que o preconceito além de hediondo é burro e comandado por pessoas cujo ego fala mais alto que a razão.

"Infiltrado na Klan" começa sua história em 1978, quando Ron Stallworth (John David Washington) resolve se tornar o primeiro policial negro de uma pequena cidade no Colorado, no Centro-Oeste dos EUA, onde a Ku Klus Klan exerce uma grande influência. Com direito a cabelo black power e um estilo cheio de ginga, ele ainda acredita que o racismo na corporação não existe, mas aos poucos vai descobrindo outra realidade. E decide lutar contra isso, expondo os maiores responsáveis - os seguidores da seita - e precisará contar com ajuda do colega policial e judeu Flip Zimmerman (Adam Driver) para desmarcar o grupo.

Por meio de ligações telefônicas e cartas, Ron consegue se infiltrar na KKK, mas é Flip quem aparece nas reuniões. Toda a investigação dura meses, até Ron ocupar uma das lideranças da seita e receber como missão sabotar movimentos negros que começavam a se impor contra o preconceito e promover linchamentos e outros crimes de ódio dos racistas.

O personagem de John David Washington (que está excelente) vai ganhando força ao longo do filme, articulando toda a trama e envolvendo facilmente os integrantes da Klan com sua conversa bem articulada e culta para conseguir chegar ao líder supremo do movimento. Afinal, para os racistas, "negro não sabe falar, só usa gíria", o que torna mais fácil para Ron enganar seus inimigos.

Já Adam Driver faz a parte dos judeus, também alvo dos racistas, e seu personagem Flip vai descobrindo aos poucos a importância de suas origens a partir do momento que começa a se envolver com a seita e perceber que por ser judeu é tão discriminado quanto pessoas de outras raças e etnias.

Todo o elenco está excelente e conta ainda com Topher Grace, como David Duke, líder supremo da KKK; Ryan Eggold, um dos seguidores; Laura Harrier, a militante negra Patrice Dumas; Jasper Pääkkonen, Ashilie Atkinson como o casal racista também integrante da seita.

"Infiltrado na Klan" também apresenta grandes figuras negras norte-americanas como Angela Davis (apenas citada), que foi fonte de inspiração para várias jovens, incluindo Patrice Dumas, na forma de pensar, de se vestir e no corte de cabelo. Corey Hawkins e Harry Belafonte interpretam os líderes negros Kwane Ture e Jerome Turner, respectivamente, que atraíram milhares de seguidores pelo país.

O filme revela ainda como é grande a hipocrisia do sistema na questão racial que, mesmo a seita tendo sido desmascarada, ela não perdeu força e ganhou novos seguidores ao longo dos anos, garantindo espaço inclusive em importantes cargos no governo. A forma como Spike Lee foi contando a trajetória do racismo norte-americano, usando até mesmo cenas de "E o vento levou" para ilustrar a Guerra de Secessão (Guerra Civil nos EUA entre os estados do Sul e do Norte, entre os anos de 1861 e 1865) até chegar às imagens dos conflitos raciais ocorridos neste ano, é um diferencial. 

Um soco no estômago e também uma aula de história sob o ponto de vista daqueles que têm sofrido ao longo dos anos com o preconceito, em especial os negros, mas que souberam impor sua força e sua voz. Roteiro, direção, figurinos, reconstituição de época e trilha sonora estão impecáveis, mas acima de tudo "Infiltrado na Klan" é um filme excelente, realista, atual, que questiona e critica duramente o atual governo norte-americano. Um dos melhores filmes de Spike Lee. Recomendadíssimo.



Ficha técnica:
Direção e roteiro: Spike Lee
Produção: Blumhouse Productions / Focus Feature
Distribuição: Universal Pictures
Duração: 2h16
Gêneros: Policial / Biografia
País: EUA
Classificação: 14 anos
Nota: 5 (0 a 5)

Tags: #InfiltradoNaKlan, #SpikeLee, #JohnDavidWashington, #AdamDriver, #racismo, #movimentonegro #espaçoz, @cineart_oficial, @cinemanoescurinho