22 setembro 2018

"Ferrugem" - O ímpeto pelo clique, difícil de ser controlado

Tati (esquerda) é a protagonista que passa a sofrer bullying depois de ser exposta na internet (Fotos: Globo Filmes/Divulgação)


Carolina Cassese


O vazamento de um vídeo íntimo, que contém uma cena de sexo entre a Tati e seu ex-namorado, desencadeia os principais acontecimentos de "Ferrugem", longa de Aly Muritiba, que está em cartaz no Belas 3 (sessão das 18 horas). O filme não só mostra os desdobramentos do ocorrido como também se propõe a investigar a maneira como a geração hiperconectada se relaciona. A representação de adolescentes de classe média em "Ferrugem" é verossímil e escapa de estereótipos, mas, para o espectador, não é tarefa fácil construir uma relação genuína de empatia com qualquer um dos personagens, já que os mesmos são construídos de maneira rasa.

A premissa do longa se assemelha com a de "Depois de Lúcia" (2012), filme mexicano dirigido por Michel Franco, também centrado em uma adolescente que, após ter um vídeo íntimo divulgado, sofre bullying pesado por parte dos seus colegas de escola. A produção mexicana, no entanto, impacta e atordoa mais o espectador. "Ferrugem" é dividido em duas partes. A primeira, contada a partir de Tati (Tiffanny Dopke), retrata o bullying que a protagonista passa a sofrer depois de ser exposta na internet. Na segunda, acompanhamos Renet (Giovanni de Lorenzi), um garoto recluso que se envolve brevemente com Tati e é um dos suspeitos de ter vazado o vídeo. Um acontecimento drástico separa os dois atos. 

A disparidade entre eles é evidente. O primeiro, colorido e dinâmico. O segundo, pela visão (ou pela culpa) de Renet, monocromático e lento. A instantaneidade permeia a primeira parte do longa. Após o vazamento do vídeo, Tati escreve para Renet e, segundos depois, o chat do Facebook notifica: “mensagem visualizada”. Nada de resposta. A ansiedade logo consome a protagonista. “Você vai me ignorar?”. Nada de resposta. Em outra cena, é também uma notificação que dá o recado de que o vídeo de Tati está em um site pornô. Pouco tempo depois, a protagonista não resiste e checa a tal página, visualizando, inclusive, os comentários horrendos. O ímpeto de clicar não é facilmente controlável. Quando Tati sai da sala de aula, após ser ridicularizada em uma apresentação de trabalho, os sons que escutamos são difusos.

As imagens também não são nítidas, representando o olhar turvo característico de quem acabou de passar por uma situação humilhante. Envergonhada, a adolescente passa a faltar às aulas. O isolamento social é um sintoma recorrente do comportamento depressivo, que acomete também a garota Alejandra em "Depois de Lúcia". A angústia está claramente presente em Tati, mas especialmente por conta do ritmo que dita o primeiro ato, não é possível conhecer a protagonista a fundo. Os rabiscos do banheiro feminino da escola da garota, típicos de qualquer colégio do Ensino Médio, compõem uma ambientação pertinente para a narrativa. Enquanto no espelho está escrito “você é linda”, de batom (mensagem que recentemente passou a marcar presença em muitos banheiros por conta das crescentes discussões sobre empoderamento), no azulejo ao lado uma garota é chamada de vadia.

A geração que compartilha textões feministas nas redes sociais ainda esbarra com comportamentos machistas arraigados. A amiga de Tati é fonte de apoio e sororidade, mas se sente na obrigação de obedecer ao namorado quando o mesmo diz que ela deveria ficar longe de sua colega. O filme deixa claro que as consequências de um vídeo íntimo vazado são diferentes para homens e mulheres, já que o ex de Tati segue com sua vida normalmente (no máximo ouvindo um comentário engraçadinho sobre o tamanho de seu pênis), enquanto a garota é completamente exposta e estigmatizada. Não se pode afirmar, no entanto, que a discussão sobre o machismo é profunda. A raiz do preconceito não está em pauta.

Aly Muritiba acerta em não mostrar os pais de Tati. Os dois se contentam com respostas vagas da menina e não percebem que há algo de errado com o seu comportamento.  Apesar de viverem na mesma casa (um ambiente bem clean, decorado inclusive com fotos grandes de Tati na sala), a conexão entre a adolescente e os pais é praticamente inexistente. Em "Ferrugem", as ausências e os silêncios são mais potentes do que qualquer aparição ou diálogo. Isolada, Tati tira a própria vida. Consciências pesadas e turvas. Inicia-se, então, o segundo ato do filme. Após o trágico ocorrido, o pai de Renet leva a família para uma casa à beira-mar. A lentidão da segunda parte pretende evidenciar a aflição de Renet. As locações são bem escolhidas e a direção de fotografia, que expressa melancolia, não deixa a desejar.

Por outro lado, a cena em que o protagonista pede desculpas a Tati, por meio de um recado na caixa postal, soa tosca e quase irritante. Algumas perguntas importantes também não são respondidas, dentre elas: o que de fato motivou Renet a espalhar o vídeo? Impulso? Algum tipo de vingança? É interessante perceber que as personagens mulheres são mais empáticas do que os homens. Enquanto David, pai de Renet e também professor, se sente no direito de pegar e esconder o caderno de Tati, a fim de apagar indícios contra o filho, a mãe, Raquel, se impõe: “isso é justo com a menina?”. Neste momento, o tempo abre. Narrativa e estética dialogam constantemente, muitas vezes até de maneira óbvia (como nessa cena da discussão entre David e Clarice, em que a conexão entre desembaçar o vidro do carro e resolver a relação dos dois é explícita). O primo de Renet ridiculariza a atitude drástica de Tati, enquanto a irmã do protagonista demonstra, mesmo que de relance, ter alguma empatia com o ocorrido.

O sensacionalismo da mídia e a cultura do espetáculo rondam a narrativa. Um programa de televisão tem acesso às gravações da câmera da escola, que mostram Tati se matando. Horas depois, o vídeo viraliza no WhatsApp. O primo de Renet recebe o conteúdo e pretende consumi-lo como entretenimento. Renet, em um primeiro momento, se nega a ver as imagens, mas, em cena posterior, decide acessar o vídeo. Novamente, a ânsia pelo clique é voraz. A segunda parte é contemplativa. O difícil é inferir que o personagem Renet tem profundidade o suficiente para ser contemplado em planos tão longos. Fica a sensação de que "Ferrugem" apresenta dois filmes (muito diferentes) em um só. A disparidade entre um ato e outro, como foi dito anteriormente, não diz respeito apenas à mudança de protagonista, mas também ao ritmo, à montagem e paleta de cores.

A transição é abrupta. O primeiro se aproxima de uma "Malhação", enquanto o segundo, mais sombrio, investiga um personagem sem conseguir adentrar de fato em seu universo. Se por um lado o longa acerta com sua direção cuidadosa e com o preciso trabalho de som, por outro peca com a construção dos personagens, já que não é possível compreender as motivações dos mesmos, e também com a superficialidade dos muitos debates apresentados – como a prática de slut shaming, o distanciamento entre pais e filhos, o isolamento social e uma possível depressão.
Duração: 1h45
Classificação: 14 anos



Tags: #Ferrugem, #TiffannyDopke, #GiovanniDeLorenzi, #AlyMuritiba, #depressão, #bullying, #drama, #GloboFilmes, #OlharDistribuição, #CinemanoEscurinho

20 setembro 2018

"O Banquete", filme-cabeça sobre lavação de roupa suja da elite

Produção nacional dirigida por Daniela Thomas foi filmada em um único cenário praticamente (Fotos: Imovision/Divulgação)

Mirtes Helena Scalioni


Dá para arriscar, de cara, que "O Banquete", dirigido por Daniela Thomas, tem sim um parentesco com "O Banquete de Platão", obra escrita por volta dos 380 anos A.C. Na verdade, há referências claras à obra do filósofo, sendo a principal delas o tema, exaustivamente debatido nos dois jantares: o amor. Em ambos, os discursos sobre masculino/feminino/homossexualidade/androginia/completude são eloquentes. Mas, no caso do filme brasileiro, há ainda muita sedução, cantadas e - por que não dizer - sacanagens.

O filme começa com o jovem Ted (Chay Sued em atuação na medida) organizando uma bela e requintada mesa de jantar. Entre os arranjos, a câmera flagra uma flor carnívora devorando, com rapidez e agilidade, um pequeno e desavisado mosquito que pousou nela. Um indício claro de que, no banquete que aconteceria ali, pessoas e histórias poderiam ser sumariamente devoradas.

Aos poucos, o filme vai mostrando ao espectador que a finalidade originalmente dita para a festa - a comemoração de 10 anos de casamento do jornalista Mauro (Rodrigo Bolzan) e da atriz Bia Moraes (Mariana Lima) - é mera desculpa para uma homérica lavação de roupa suja. E dá-lhe confissões, traições, revelações, jogos, loucuras.

Em entrevistas, a diretora Daniela Thomas tem revelado pelo menos duas particularidades do seu filme. A primeira: o personagem Mauro, que passa a festa toda com medo de que a polícia chegue para prendê-lo, é baseado no jornalista e diretor da Folha de São Paulo, Otávio Frias Filho (recentemente falecido), que viveu situação semelhante quando, assim como Mauro, publicou uma carta aberta aos brasileiros revelando sua indignação com o então presidente Fernando Collor de Mello, no fim da década de 80.

Outra revelação de Daniela foi a dificuldade de filmar em um mesmo lugar fechado, um único cenário praticamente, o que fez valorizar o trabalho dos atores. Nesse caso, ela tem razão de sobra. As atuações, até pela proximidade e intimidade com a câmera, são extraordinárias.

Drica Morais está cínica e perversa como Nora, a dona da casa; Caco Ciocler dá um show como o marido sempre bêbado de Nora; Fabiana Gugli está muito convincente como a insegura Maria; Gustavo Machado dá seu recado como o cronista homossexual Luck; Georgette Fadel está ótima como a também homossexual Claudinha; Bruna Linzmeyer se revela como a stripper Cat Woman e Mariana Lima faz tudo certo como a diva do teatro Bia Moraes.

Enfim, "O Banquete" é um filme-cabeça, de discursos e citações, quase uma peça de teatro. Não é todo mundo que gosta de trabalhos assim, que podem soar herméticos e inacessíveis. Mesmo assim, vale. Não só pela interpretação dos ótimos atores, mas também para uma boa reflexão sobre a nossa elite dita intelectual, que vivencia uma verdadeira catarse enquanto brinda e se embriaga com um caríssimo vinho italiano. O filme está em cartaz no Belas 3 (sessões 16h e 21h40) e Net Cineart Ponteio nas salas 2 (14h20) e 3 (15h20 e 19h20).
Classificação: 14 anos
Duração: 1h44
Distribuição: Imovision



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