22 setembro 2019

"Bacurau", um faroeste com a pureza do nordestino e a força do cangaço

Sônia Braga é um dos destaques do elenco que faz da produção nacional uma das melhores lançadas neste ano (Fotos: Vitrine Filmes)

Maristela Bretas


Uma grande produção, que merecia estar na disputa do Oscar como representante do Brasil. "Bacurau", dos diretores e roteiristas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, até foi indicado mas não chegou lá. A escolha ficou por outro ótimo filme "A Vida Invisível", de Karin Aïnouz, Mesmo assim, o longa conquistou o publico nacional e internacional, atingindo uma bilheteria superior a R$ 2 milhões em sua primeira semana de exibição, além de levar o Grande Prêmio de Júri do Festival de Cannes e ser escolhido o Melhor Filme no 37º Festival de Munique.


Realizado no Sertão do Seridó, na divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba, "Bacurau" é uma mistura de passado e futuro, paz e violência, dor e raiva, poder e fé. O filme é o nome de um povoado, no meio do nada, cercado pela seca, comida escassa e a ganância de políticos, que só procuram o lugar no período das eleições. É o retrato fiel da nossa realidade, em especial do povo do Nordeste, que dribla a injustiça social com garra e solidariedade. 

O filme explora a capacidade do ser humano de se adaptar ao meio ambiente, fazendo dele o melhor lugar para viver ou se defender. Ao mesmo tempo, mostra que qualquer um pode abrir mão de uma natureza pacífica e lutar com unhas e dentes quando tudo o que possui e respeita está ameaçado. 

Diretores  Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho

Os moradores de Bacurau levam uma vida pacata, sem se mostrarem para o mundo, mas conectado a ele pela internet. Mas assim como o pássaro que deu nome à cidade e é típico da região e que se manifesta somente á noite ou em perigo, a população local também é capaz de se transformar quando a paz está ameaçada. Logo nas primeiras cenas, os diretores mostram, por meio de caixões espalhados numa estrada, que o enredo vai explorar a morte sobre diferentes aspectos.

Tudo se passa num futuro incerto, onde no mundo fora de Bacurau, a violência é parte do cotidiano enquanto no pequeno vilarejo nordestino, as diferenças foram resolvidas e a paz reina. O ritmo do filme é contado passo a passo, como a calma interiorana, e vai ganhando tensão após o falecimento de Dona Carmelita, uma das ilustres moradoras do local. Vários fatos estranhos são registrados: a localização da cidade some dos mapas digitais, a aparição de um disco voador e a ocorrência de assassinatos inexplicáveis. Tudo isso altera a rotina de Bacurau, provocando reações surpreendentes e diversas nos nativos. O pacato cidadão então se torna uma fera ferida, muitas vezes mais violento que seus algozes.


Sônia Braga é um dos destaques, trabalhando novamente com Kleber Mendonça Filho (a primeira vez foi o ótimo "Aquarius"). Em "Bacurau", ela interpreta Domingas, uma médica local alcoólatra, de humor sarcástico e defensora ferrenha da cidade. Além dela, vários outros atores contribuem com brilho para formar um elenco redondo, com cada participação sendo essencial para o desenrolar da história, tanto os brasileiros quanto os estrangeiros. 


Como o ator alemão Udo Kier (de "Bastardos Inglórios" - 2009), que faz o americano Michael; Bárbara Colen, interpreta Teresa, a jovem que retorna a sua terra natal; Wilson Rabelo, como Plínio, viúvo de Dona Carmelita e um dos moradores mais atuantes e respeitados da vila; Thomas Aquino, como Pacote, ligado ao mundo do crime, mas protetor da cidade, juntamente com Lunga, interpretado por Silvero Pereira, que dá um show de atuação.


Elenco, fotografia, som, figurino, direção e roteiro entregam uma obra cinematográfica marcante. Aos expectadores mais incautos, alerto que o clímax do filme é de extrema violência, justificada pela forma como a trama foi sendo apresentada, explorando o lado psicológico (às vezes psicopata) de cada personagem. Um ponto importante que vale uma boa discussão na mesa de um bar após a sessão é a importância dada pelos moradores de Bacurau ao Museu da Cidade, sempre indicado aos visitantes que passam pela localidade. Com certeza, ele faz toda a diferença na história
.
"Bacurau" é o retrato de um Brasil de ontem e de hoje ao mostrar a ganância de políticos e governantes inescrupulosos, que distribuem caixões, comida vencida e remédios tarja preta sem receita médica, na tentativa de alienar a população em tempos de eleições. Um filme imperdível, que faz a gente pensar muito e sair do cinema com a sensação de ter sido atingido com um soco no estômago.


Ficha técnica:
Direção e roteiro:  Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Produção: CinemaScópio, Arte France Cinéma, SBS, Símio, Telecine Productions, Globo Filmes
Distribuição: Vitrine Filmes
Duração: 2h10
Gêneros: Drama, Suspense, Faroeste
Países: Brasil e França
Classificação: 16 anos
Nota: 4 (0 a 5)

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19 setembro 2019

“A Música da Minha Vida” e a difícil arte de ser livre

Veveik Kalra interpreta um adolescente britânico, de família paquistanesa, que venera o cantor e compositor Bruce Springsteen (Fotos: Nick Wall/Warner Bros. Pictures)


Carolina Cassese


Depois dos sucessos de “Bohemian Rhapsody” (2018), “Rocketman” (2019) e “Yesterday” (2019), que trouxeram a magia de artistas consagrados (respectivamente da banda Queen, do cantor Elton John e dos Beatles) para as telas, chegou a vez de celebrar a trajetória musical de Bruce Springsteen. No longa “A Música da Minha Vida”, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (19), Jeved (Veveik Kalra) é um adolescente britânico, de família paquistanesa, que vive na cidade de Luton, em 1987. 

Naquela época, a Inglaterra era governada pela primeira-ministra Margaret Thatcher, conhecida como “A Dama de Ferro”. Diante de um contexto repleto de tensões econômicas e raciais (nesse mesmo período, o líder sul-africano Nelson Mandela seguia preso, enquanto ativistas do mundo inteiro iam às ruas pedir sua liberdade), acompanhamos a dificuldade do protagonista em encontrar a própria identidade e se livrar das amarras dos pais conservadores. 


Dirigido por Gurinder Chadha, o filme (baseado em uma história verídica) foca também no preconceito que alguns britânicos nutrem pelos imigrantes paquistaneses. Assim como nas dificuldades que esses enfrentam para serem inseridos no mercado de trabalho - muitos acabam em posições subalternas e não conseguem ascender socialmente. O longa acerta em mostrar que, em períodos de crise, os grupos minoritários são especialmente afetados e ainda mais atacados por supremacistas. Ao tratar dessa temática, a produção se torna assustadoramente atual. 


Javed quer fugir dessa realidade que, para ele, é sombria e sem futuro no horizonte. Quer escrever, o que o pai não considera um ofício. Na escola, um mundo novo se abre. Ao se deparar com a diversidade de tribos, entende que há muita vida lá fora. Com o empurrão da professora de literatura e a dica preciosa do colega e conterrâneo que lhe passa fitas K-7 de Bruce Springsteen, ele amplia seus horizontes. E percebe que as inquietações que atormentam seu interior são compartilhadas por muita gente mundo afora. Até mesmo por Springsteen, esse rapaz de Nova Jersey, que passou para a história da música mundial (o cantor, inclusive, completa 70 anos no próximo dia 23). 

A partir do momento que o jovem paquistanês descobre as músicas do “Boss”, sua vida ganha um sentido - e o longa se torna mais envolvente. Ao conhecer Eliza (Nell Williams), ele encontra uma garota para compartilhar suas descobertas e os planos para o futuro. Seu talento para a escrita passa a chamar atenção e sua carreira começa a deslanchar. No entanto, a turbulenta relação com o pai (interpretado por Kulvinder Ghir) cria alguns impedimentos - e é responsável pela maior parte dos momentos de tensão. 


Em algumas cenas, o filme pode parecer literal demais, como nas vezes em que palavras-chave das músicas de Springsteen aparecem na tela. O recurso parece desnecessário, já que a conexão entre a letra das canções e a vida de Javed já é bem evidente. Pode-se pontuar também que, ao passo que o longa acerta em muitas críticas sociais, há uma idealização dos Estados Unidos. 


Em certo momento, o protagonista afirma que os principais males da Inglaterra (como a xenofobia), praticamente não existem na terra de Springsteen. No entanto, sabe-se que os EUA têm um histórico considerável de intolerância contra outras nacionalidades (especialmente em se tratando de países mais periféricos). As atuações são, sem dúvida, o ponto alto do filme, com destaque para Veveik Kalra e a maior parte do elenco jovem. 

No fim das contas, “A Música da Minha Vida” pode ser classificado como um “feel-good movie”, daqueles que assistimos com um sorriso no rosto. Faz divertir e cantar, mas não deixa de tocar em temas sérios que, relevantes naquele hoje distante 1987, ainda soam dolorosamente pertinentes em pleno 2019. 
Classificação: 12 anos
Duração: 1h57
Distribuição: Warner Bros. Pictures


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