26 março 2021

"Relatos do Mundo" explora belas paisagens e diálogos de poucas palavras

Atriz alemã Helena Zengel divide o brilho da produção com Tom Hanks em faroeste dirigido por Paul Greengrass
 (Fotos: Universal Pictures / Divulgação)


Maristela Bretas


Filme com Tom Hanks, até mesmo se for mediano, é chamariz para o público. Não seria diferente com "Relatos do Mundo" ("News of The World"), produção que está em exibição na Netflix. Mas a novidade desta vez é que o astro divide o estrelato (e em alguns momentos perde) com uma jovem atriz alemã de 12 anos - Helena Zengel. Com apenas quatro produções em sua carreira - duas ainda por estrear - já se destacou em seu país com o filme "System Crasher" ("Transtorno Explosivo") de 2019, e indicações para o Globo de Ouro e SAG Awards deste ano na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante.


Hanks e Zengel dividem o assento de uma carroça pelas estradas poeirentas do Oeste dos EUA no filme dirigido por Paul Greengrass, responsável por "Capitão Phillips" (2013), também com Tom Hanks, "22 de Julho" (2020 - Netflix) e a franquia "Jason Bourne" com Matt Damon, inclusive o último, de 2016.

A produção concorre a quatro estatuetas no Oscar 2021 - Melhor Trilha Sonora, Melhor Design de Produção, Melhor Som, Melhor Trilha Sonora e Melhor Fotografia. Esta última indicação muito merecida. O diretor fez uma escolha perfeita de luz, cor e locações que garantem um dos principais destaques do filme. As cenas mais bonitas são exatamente as do deserto, pela manhã ou ao entardecer.
 

A narrativa é lenta, acompanhando o ritmo do trotar dos cavalos, representando bem a jornada do solitário capitão Jefferson Kyle Kidd (papel de Tom Hanks), um veterano de duas guerras que viaja pelo Texas, parando de cidade em cidade para ler as notícias do mundo para seus habitantes. 

Um homem sereno, de poucas palavras - no estilo Tom Hanks de atuar. Pelo caminho, um encontro inesperado vai mudar sua rotina. Johanna (Helena Zengel), uma menina alemã criada pela tribo Kiowa após a morte dos pais, é encontrada perdida no deserto, não fala inglês, apenas um dialeto que mistura as duas línguas.


Apesar da hostilidade da criança, Kidd decide levá-la em seu trajeto, enquanto busca familiares. No percurso, a agressividade da jovem passageira de poucas palavras vai se desfazendo com a atenção e a proteção que recebe do capitão. Um forte vínculo passa a unir os dois. E é esta amizade que vai também ajudá-los a enfrentar os perigos do percurso. Apesar de solitário, ele é um contador de histórias que encanta seu público e à jovem Johanna.


A história de "Relatos do Mundo" é adaptada do livro escrito por Paulette Jiles e se passa em 1870, pouco depois da Guerra de Secessão. E claro, não podia deixar de citar, mesmo que superficialmente em algumas falas, o fim da escravatura que não era aceita no sul do país e a violência contra as tribos indígenas. Mas é pelas notícias narradas como um conto de fadas que os habitantes passam a saber mais sobre o progresso que está chegando. Mesmo que isso desagrade alguns.


Além da fotografia, o filme também entrega um figurino de época bem elaborado e fiel e uma trilha sonora composta por James Newton Howard ("Operação Red Sparrow" - 2018, "Animais Fantásticos e OndeHabitam" - 2016, "Malévola" - 2014 e muitos outros sucessos), que justifica a indicação ao Oscar 2021.


Não espere um faroeste no estilo John Wayne. "Relatos do Mundo" é mais um drama que se passa no Velho Oeste e já no encontro dos personagens principais é possível prever o final. Mas não tira o interesse pelo filme que, como um bom bang-bang tem tiros, brigas de bar, tocaias no morro e ataques. E tem Tom Hanks com sua jovem parceira Helena Zengel, um quase par romântico - Mrs. Gannett (Elizabeth Marvel) - e uns vilões razoáveis. Vale a pena conferir.


Ficha técnica:
Direção: Paul Greengrass
Exibição: Netflix
Produção: Universal Pictures
Duração: 1h59
Classificação: 16 anos
País: EUA
Gêneros: Drama / Faroeste
Nota: 3,8 (de 0 a 5)

23 março 2021

"Uma Noite em Miami" - Um encontro pelos direitos civis dos negros nos EUA

Através de quatro líderes sociais, diretora expõe a segregação racial nos anos 1960 (Fotos: Amazon Prime Video/Divulgação)

Silvana Monteiro


A premiada atriz Regina King marca sua estreia como diretora de cinema com "Uma Noite em Miami" ("One Night in Miami"), produção original da Amazon Prime Video. Embora já tenha experiência na direção de séries de TV, King abraçou o desafio de dirigir um roteiro adaptado da peça teatral de mesmo nome, de autoria de Kemp Powes, responsável também pelo roteiro do filme, indicado ao Oscar 2021 nas categorias de Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Canção Original.

O enredo prima pela humanização absoluta de quatro líderes sociais da luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Nesse quesito, é bem possível que o telespectador fique tentado a fazer uma comparação entre as condutas e diálogos retratados no filme à luta antirracista dos dias atuais. É pulsante na trama a tentativa de individualizar e desmitificar as personalidades.

 

O filme retrata o encontro real entre o pugilista Cassius Clay (que mais tarde mudaria o nome para Muhammad Ali) interpretado por Eli Goree; o cantor de soul, Sam Cooke, vivido por Leslie Odom Jr.; o jogador de futebol americano Jim Brown, representado por Aldis Hodge, e Malcolm X, um dos defensores do Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana, de inspiração separatista, aqui encenado por Kingsley Ben-Adir .


Esta análise é importante porque transmite uma mensagem social, que parece óbvia, mas que é ainda muito necessária no combate à visão racista. Mesmo que impulsionados por um mesmo ideal, ainda que ativistas na mesma batalha, pessoas negras não são objetos, e muito menos são produtos de uma escala industrial. Cada indivíduo pensa, age, luta e se movimenta de modo diferente ante aos conflitos e gatilhos provocados pelo racismo.

O filme é extremamente discursivo e, por isso, pode cansar o telespectador indisposto a longos e complexos diálogos. São praticamente duas horas de uma imersão psicossocial e histórica na vida dos quatro ídolos, desenvolvida a partir da interlocução entre os personagens retratados.
 

Depois de Cassius Clay (Muhammad Ali) vencer o campeão dos pesos pesados Sonny Liston, no Miami Convention Hall, ele se reúne com Sam Cooke, Jim Brown e Malcolm X no quarto do Hampton House Motel, no bairro de Overtown, em Miami para uma comemoração intimista. 
 
O encontro num local privado não foi uma escolha pura e simples, mas um instinto de sobrevivência. Afinal, por causa das chamadas "leis de Jim Crow" de segregação racial, Cassius Clay não podia ir aos clubes ou bares da região comemorar a vitória nos ringues, por isso o melhor foi se refugiar na hospedagem.

 

Ao mostrar virtudes e fraquezas dos personagens, o autor nos remete a uma experiência de observação e, ao mesmo tempo, à compreensão das marcas deixadas pela segregação e o ímpeto de se manterem vivos na luta contra o preconceito racial.
 
Uma dica para as pessoas mais jovens que desconhecem a história desses ícones, é pesquisar um pouco sobre cada um deles antes de assistirem ao drama, uma vez que o filme se passa no ano de 1964. Sam Cooke foi assassinado 10 meses mais tarde, em incidente suspeito e, no ano seguinte, em fevereiro de 1965, Malcolm X levou 13 tiros enquanto discursava no Harlem. Muhammad Ali morreu em 2016, aos 74 anos, de problemas respiratórios. Jim Brown está vivo e fez 85 anos em fevereiro.


Terence Blanchard ("Destacamento Blood") é o responsável por uma primorosa trilha sonora recheada de black music, sobretudo blues e soul, com destaque para a belíssima canção "A Change Is Gonna Come" e, claro, para “Speak Now”, faixa original escrita por Leslie Odom Jr. e Sam Ashworth. 
 
A fotografia também chama a atenção ao provocar no telespectador a sensação de que está empunhando a câmera e observando os fatos ocorridos naquele encontro noturno de 1964.
 
 

Mais do que nunca, "Uma Noite em Miami" é um filme necessário e mesmo tendo se passado há quase 60 anos daquela reunião, sua temática é real e urgente. E nos leva a desejar tantas noites mais como a mostrada na obra, seja em Miami, Nova York, BH ou em qualquer lugar em que o racismo ainda se mostra uma ameaça sufocante e letal. 
 
Claro, sem romantizar o fato de que ao invés de simplesmente comemorarem livres, leves e soltos, esses homens foram levados a pensar sobre um futuro que mal sabem eles, embora com muitas conquistas, ainda não aconteceu de forma plena.

Ficha técnica:
Direção:
Regina King
Exibição: Amazon Prime Video
Duração: 1h54
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gênero: Drama