24 outubro 2021

"Maid": uma jornada contra o silenciamento

Nova minissérie trata sobre violência doméstica e exploração do trabalho (Fotos: Ricardo Hubbs/Netflix)


Carolina Cassese


“Você acha que eu não conheço esse tapete? Eu já estive nesse tapete. Perdi semanas minha vida nesse tapete. Você vai se levantar desse tapete, Alex, e vai revidar. Fique furiosa! Puxe essa fúria lá de dentro, mama. O que ele fez com você foi babaca. É melhor começar a ficar com raiva.” Centrada na luta de uma mãe que é vítima de violência doméstica estreou em 1º de outubro, na Netflix, a minissérie "Maid", idealizada por Molly Smith Metzler. 

A produção é adaptada do livro de memórias "Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother's Will to Survive", publicado por Stephanie Land em 2019. A série abarca discussões densas de temas como abuso psicológico, exploração do trabalhador e relações familiares conturbadas.

Nossa personagem principal é interpretada por Margaret Qualley, que entrega uma performance forte, cheia de personalidade. Sua dupla de cena é a adorável Rylea Nevaeh Whittet, que encarna a menina Maddie. As duas atrizes têm uma química impecável, o que propicia cenas bastante ternas e críveis.


Logo no primeiro capítulo, a série apresenta a discussão sobre o que pode ou não ser caracterizado violência doméstica. “Vou chamar a polícia e dizer o quê, que ele não me bateu?”, questiona Alex. Ela passa por uma verdadeira jornada até compreender que o abuso se manifesta de diferentes maneiras, inclusive por meio de gritos e socos na parede.

O problema é que nem sempre a lei e as principais instituições terão essa mesma leitura. A minissérie faz um uso interessante de recursos visuais e sonoros ao longo dos dez episódios. Um exemplo é a calculadora que aparece na tela quando Alex está pensando em suas finanças. Essa é uma forma de fazermos as contas junto com as personagem: será que dá para gastar com isso? Não é melhor optar por outro produto? Esse salário vai ser suficiente?


Quando a protagonista enfrenta um momento difícil, vemos ela literalmente afundar no sofá, uma metáfora bastante elucidativa acerca do transtorno depressivo. Outra boa cena é a primeira vez de Alex  no tribunal, quando ela escuta o advogado e a juíza falarem literalmente a palavra “juridiquês” a cada vez que se referem a algum termo específico da área do direito. Dessa maneira, nos sentimos tão confusos quanto a protagonista, num universo que parece fazer o possível para garantir que apenas uma seleta parcela especializada da população consiga compreender quais são seus direitos.

Um grande acerto de "Maid" sem dúvida diz respeito à complexidade dos personagens. Paula (Andie MacDowell), mãe de Alex, é um excelente exemplo de como as figuras da trama são decididamente repletas de nuances. Ela sem dúvidas ama a filha e a neta, ao passo que muitas vezes some do mapa, deixando as duas numa situação de absoluta necessidade. Em diversos momentos, Paula não parece acreditar no fato de que a filha foi vítima de violência por parte de Sean. 


Outra personagem carregada de facetas é Regina, a primeira patroa de Alex. É inevitável sentir raiva dela nos primeiros episódios, quando a mesma humilha a faxineira em mais de uma ocasião. No decorrer dos capítulos, porém, percebemos que ela carrega muitas dores e pode também ser generosa. O mesmo acontece com Sean, o ex da protagonista. Ele é inegavelmente um abusador, ao mesmo tempo que passa por dramas pessoais e, em alguns momentos, parece de fato ter boas intenções.

A produção da Netflix acerta ainda em trabalhar muito bem o arquétipo do nice guy, que é basicamente aquele cara que se sente desvalorizado, alegando que “as mulheres só gostam dos cafajestes”. Na trama, quem encarna essa representação é Nate, personagem interpretado por Raymond Ablack. Ele é sem dúvidas muito legal, romântico e prestativo. Mas isso não impede que seja também chantagista e mal intencionado em determinados momentos.


Nos personagens de "Maid", observamos a convivência de traços de personalidade que à primeira vista podem parecer contraditórios: como um homem abusador pode às vezes ter boas intenções e amar de verdade a própria filha? Como um cara legal como Nate pode ser aproveitador? Nosso vício em arquétipos pode nos fazer querer colocar um rótulo em cada personagem, mas a série nos desafia constantemente a respeito desses estereótipos preconcebidos.

A própria protagonista nos desafia. Ela usa a roupa da patroa às escondidas e abre o vinho da casa em que está trabalhando. Isso é errado, parte da nossa consciência pode dizer. Mas o que é certo? Trabalhar tanto em troca de pouquíssimos trocados e ainda ser humilhada?

Há também o fato de que a trajetória de cura de Alex não é linear, o que transmite uma mensagem muito importante. Assim como Sean tem recaídas no que diz respeito ao tratamento da sua dependência alcoólica, a personagem principal também tem suas recaídas. Esses pequenos retrocessos fazem parte do processo, até mesmo do progresso, e de forma alguma diminuem o mérito da protagonista.


Muitas vezes, nos pegamos sentindo raiva de personagens como Yolanda, a rígida chefe de Alex. A minissérie apresenta uma realista dinâmica entre ela e suas funcionárias: Yolanda explora, ao passo que também sempre foi (e continua sendo) significativamente explorada. 

Em determinada cena, ela diz: “Mesmo quando um cliente fala, olhando bem na sua cara, ele está falando sozinho. Faz dez anos que eu limpo essas casas e ainda sou chamada de Selena, Gordita. Não importa. Sou só um burrito que elas chamam quando o banheiro começa a feder”. 

No final das contas, todas fazem parte da mesma camada social, definitivamente da mesma classe trabalhadora, com a diferença de que a chefe da Value Maids consegue exercer algum tipo de pequeno poder intimidador sobre as empregadas.


"Maid" traz também uma importante reflexão acerca do quanto a sociedade impõe às mulheres a tarefa de cuidarem de homens - irmãos, pais, maridos, namorados. Sean constantemente evoca o fato de ter uma doença, o alcoolismo, que sem dúvidas merece muita atenção. 

No entanto, Alex também está doente. Por conta dos abusos de seu companheiro, ela desenvolve diversos quadros de transtornos psicológicos, que também a deixam debilitada, muitas vezes sem conseguir sair da cama. Seu ex, porém, não parece considerar a doença dela.

A partir da minissérie, podemos compreender melhor porque dizem que “mulheres amadurecem antes dos homens”. Elas cuidam da casa, dos filhos, quando necessário das mães e até mesmo de seus companheiros. As jornadas são duplas, triplas, quase infinitas. Isso por si só pode ser bastante adoecedor. Homens como Sean, no entanto, parecem ter mais direito de errar e, ainda, de não crescer.


Algumas observações sobre a produção apontaram que a realidade apresentada é privilegiada em relação ao que vemos no Brasil. Essa é sem dúvidas pertinente, já que a nossa pobreza, ou melhor dizendo, a nossa miséria, é inegavelmente mais cruel, nosso índice de feminicídios é maior, nossas taxas de violência doméstica, em especial contra mulheres negras, é assustadora. 

Além do mais, a cultura brasileira de exploração do trabalho doméstico é bastante particular e especialmente cruel. Afinal de contas, o “quartinho de empregada” não faz parte da arquitetura dos apartamentos em países mais igualitários. Devemos ter em mente que, de fato, a série apresenta um recorte específico de pobreza, muito típica do contexto estadunidense - mas claro, isso não é um demérito da produção.

Nem todas podem ser salvas. Essa é uma triste, porém verdadeira lição que podemos tirar da minissérie. Assim como Alex, nós desesperadamente queremos tirar a personagem Danielle da situação de opressão em que ela se encontra. Também sentimos a necessidade de salvar Paula desse ciclo de abusos que se perpetua ao longo de décadas.


“Elas voltam com mais frequência do que ficam. A maioria das mulheres precisa de sete tentativas para finalmente partir”, diz Denise, que administra o abrigo para vítimas de violência doméstica. De qualquer maneira, a possível salvação aqui não passa pelo príncipe encantado das histórias clássicas. Não precisamos de um homem, e sim de políticas públicas, solidariedade, autoconhecimento e diferentes tipos de amor (o romântico é apenas um deles).

É importante mencionar que, ao longo dos episódios, somos testemunhas de muitos sopros importantes de resistência. Em um dos últimos capítulos, Sean elogia a aparência de Alex e ela logo replica: “Não é para você”. Sua fala pode soar desnecessariamente direta, mas é bastante importante se considerarmos a história dos dois e, ainda, o fato de que homens parecem sempre acreditar que a beleza feminina é para a apreciação deles.

Também é muito forte quando, na “loja de mentira” do abrigo de violência doméstica, Alexse lembra exatamente de qual é sua cor preferida. Anteriormente, a funcionária da loja tinha dito que o abuso sistemático nos faz esquecer de quem somos, de quais são nossos verdadeiros gostos, do que é genuinamente nosso.


A narrativa evidencia a importância de um Estado presente, que dê assistência a essas mulheres desamparadas. A ampliação de creches gratuitas, por exemplo, é uma medida que pode melhorar significativamente a vida de mães que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os filhos. Alex precisa enfrentar uma interminável burocracia para conseguir algum tipo de apoio, que mesmo assim é precário. É inaceitável também que um país rico e vasto como os Estados Unidos apresente um número expressivo de pessoas que não tem onde morar.

Quando observamos Alex mudar de casa tantas vezes (assim como sua mãe), é possível que nos lembremos de "Nomadland", o mais recente vencedor do Oscar. “Casa é só uma palavra ou algo que carrega com você?”, questiona uma personagem do filme de Chloe Zhao, parafraseando a canção "Home It’s a Question Mark". 


A casa de Alex em determinado momento é o abrigo para vítimas de violência doméstica, não apenas porque ela está de fato morando lá, mas principalmente porque a protagonista passa a sentir confiança em suas colegas e se sente segura ali. Para Paula, casa é onde ela pode ver o pôr do sol de algodão doce e as estrelas. Num momento de cansaço, Maddie questiona a mãe: “Quando vamos para casa?”.

Na maior parte das vezes, porém, a garota parece se sentir em casa com muita facilidade, especialmente por receber tanto carinho de Alex. Casa, para elas, é um processo. É uma road trip, uma temporada de dez episódios e, em cada parada, prendemos a respiração junto com a protagonista e sua filha, na ânsia de saber se elas serão acolhidas ali. 

No final das contas, casa, para Alex e Maddie, diz respeito a essa forte relação de mãe e filha, mesmo diante de uma sociedade que ainda é bastante hostil com as mulheres, em especial com as que não têm muitos recursos financeiros.


Ficha técnica:
Criação: Molly Smith Metzler
Produção e exibição: Netflix
Duração: 1a Temporada - 10 episódios (média de 60 minutos cada)
País: EUA
Gênero: drama
Classificação: 16 anos

21 outubro 2021

Em “Round 6”, a pergunta que fica é: vale tudo no jogo da vida?

Pessoas falidas são atraídas para um lugar misterioso e começam a participar de competições infantis e mortais (Fotos: Netflix)


Mirtes Helena Scalioni


Não se pode negar que “Round 6” ("Squid Game"), produção sul-coreana em cartaz no Netflix, seja uma obra instigante e curiosa. Praticamente um retrato do capitalismo selvagem que elimina os que não querem – ou não conseguem – fazer parte da engrenagem, a série de nove episódios é o maior sucesso mundial do streaming, capaz de levar espectadores mais atentos a uma necessária reflexão sobre o futuro da humanidade.


Embora repleto de cenas muito violentas – talvez propositadamente exageradas – a história tem sacadas geniais para deixar claro como funciona o jogo. Traições de quem parecia amigo, a eterna desvantagem das mulheres, a apologia da esperteza (“farinha pouca, meu pirão primeiro”) e a conclusão de que somos apenas um número no sistema recheiam o discurso da série que, se assusta no início, fisga o público até o final.


A sinopse é, por si só, esquisita: homens e mulheres falidos e sem esperança são atraídos para um lugar misterioso onde são catalogados com um número e, a partir daí, começam a participar de competições. Ao final, o vencedor vai receber uma fortuna em dinheiro. Interessante é que os jogos são todos infantis, alguns deles conhecidos no Brasil como “Batatinha frita 1,2,3”, bolinhas de gude e cabo de guerra, nos quais nem sempre a força se impõe. 

Muitas vezes, a sorte se sobrepõe e a injustiça pode sim sair vitoriosa. Assim como na vida. O grande susto da história é: quem perde, paga com a vida. O perdedor é sumariamente eliminado com um tiro na cabeça ou no peito.


Seong Gi-hun (Lee Jung-jae) é o protagonista de “Round 6”, que encanta e convence como o jogador 456, um malandro boa praça quase inocente que tem sua última chance de consertar uma vida cheia de erros. Jung Ho-yeon (Kang Sae-byeok) faz a jogadora 067, jovem amarga fugitiva da Coreia do Norte, que precisa da grana para resgatar a mãe e cuidar do irmãozinho. Cho Sang-woo (Park Hae Soo) faz o jogador 218, amigo de infância do 456, profissional brilhante que perdeu tudo no mercado financeiro. 


Representando a experiência, Oh Il-nam (Oh Young-soo) é o competidor 001, um idoso que tem um tumor no cérebro. Há outros personagens de destaque, como o vilão truculento, o médico que entra no esquema criminoso da organização, a moça que acaba de sair da cadeia depois de ter matado o padrasto, a espertinha metida a conquistadora... A fauna é rica e diversificada.


Não fica claro para o espectador quem são as pessoas que comandam aquele lugar e nem por que alguém se daria ao trabalho de criar uma organização tão esdrúxula quanto improvável. Os líderes parecem se divertir com o sofrimento e os apuros dos jogadores, cada um com seu pequeno – ou grande – drama. Claro que, num ambiente tão hostil e perigoso, ética e moral são ideias raras.


Pena que o final decepcione um pouco, como se o autor tivesse se perdido e inventado, de última hora, um desfecho inverossímil e incabível. O escritor Hwang Dong-hyuk tem dito em entrevistas que escreveu a série sem pensar em uma segunda temporada. Parece mais uma jogada de marketing, pois muitas tramas não se fecham e alguns nós não foram desfeitos. Por mais subjetivas que sejam as metáforas e parábolas, elas também carecem de um mínimo de coerência.


Ficha técnica:
Criação:
Hwang Dong-hyuk
Exibição: Netflix
Duração: 9 episódios (60 minutos cada)
País: Coreia do Sul
Gêneros: drama/ suspense / ação
Classificação: 16 anos