25 fevereiro 2022

Desconstruindo Almodóvar

O cineasta e Penélope Cruz, uma de suas atrizes preferidas (Divulgação)


Mirtes Helena Scalioni


Não se pode negar: a recente chegada de cerca de dez obras de Almodóvar na Netflix é uma excelente oportunidade de maratonar e conhecer grande parte do trabalho do festejado cineasta. Mas é também a chance de, conhecendo mais, comparar, analisar e, quem sabe, criticar um ou outro filme do autor de "Ata-me", "Carne Trêmula", "Volver", “A Pele Que Habito”, pequenas e inquestionáveis obras-primas.

O mesmo não se pode dizer do recente "Mães Paralelas" ("Madres Paralelas"), que ficou aquém da expectativa apesar das belíssimas atuações da sempre linda Penélope Cruz e da estreante Milena Smit no papel das mães que têm seus “destinos entrelaçados” como se costuma dizer nas novelas. Faltou liga entre a história das mulheres e a outra trama do filme: a busca das ossadas de pessoas mortas pela ditadura de Franco durante a guerra civil espanhola.

Mães Paralelas (Divulgação)

Se tem todos os ingredientes de sempre – cores, alcova, desgraças, desencontros - por que “Mães Paralelas” não é tão brilhante? Exatamente porque as duas histórias, a das mães que acabam de parir seus filhos num mesmo hospital, e a da família que quer desenterrar para enterrar seus mortos, correm paralelamente no exato sentido do termo: nunca se encontram. É como se não houvesse ligação nenhuma entre elas, como se fossem dois filmes. Ficou manco.

Kika (Divulgação)

Já quem aproveitou essa onda da Netflix para assistir ao longa "Kika", de 1993, um dos menos famosos, pode ter se decepcionado. Como sempre, comédia e drama se misturam a diálogos e situações que, mais do que inusitadas, são inverossímeis. Traições, incesto, estupro, suicídios, crimes e toda sorte de esquisitices são retratadas de um jeito tão bizarro que até os mais ferrenhos fãs do cineasta podem estranhar. 

Não se trata apenas de extravagâncias e exageros - estamos todos acostumados a essas cenas e argumentos atípicos do diretor. Mas são tantas as tramas, tantos os personagens que, a certa hora, o espectador se perde, quase desanima.

Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Divulgação)

Como sempre, assim como em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, a mulherada de “Kika” é retratada como um bando de loucas, taradas, histéricas, sempre aos gritos, quebrando tudo que encontram pela frente e prontas a cortar os pulsos ou pular da janela quando são rejeitadas ou traídas. Pelos homens, claro. 

E esse é um perfil que, convenhamos, não ajuda em nada a luta feminina por espaço, reconhecimento e igualdade – mesmo admitindo que a função maior do cinema não é panfletar. Mas o discurso talvez seja anacrônico, ainda que exageradamente performático.

Outra coisa: aqui por esses lados, ninguém mais fica chocado com ações desse naipe. Crimes, traições, incestos, paixões proibidas e bizarrices são temas frequentes também na nossa literatura e cinematografia. Quem tem Nelson Rodrigues não se escandaliza com Almodóvar. E o autor brasileiro, convenhamos, dá um banho no espanhol na arte de contar histórias.



21 fevereiro 2022

“A Ilha de Bergman”: filme cabeça e metalinguagem para lembrar a obra do genial diretor sueco

O filme se passa na ilha de Fårö, na Suécia, onde o cineasta passou boa parte de sua vida (Fotos: Pandora Filmes/Divulgação)


Mirtes Helena Scalioni


Fårö fica no Mar Báltico, a alguns quilômetros de Gotland, na Suécia. É a segunda maior ilha da província, com 5 quilômetros de comprimento e o nome se escreve assim, com uma estranha acentuação no “a” e trema no “o”.

Mas o que a torna famosa é o fato de ter sido, por muito tempo, o refúgio do angustiado Ingmar Bergman, que realizou ali muitas de suas obras. E hoje o lugar volta à cena, por ter sido motivo e inspiração para “A Ilha de Bergman” (“Bergman Island”), em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (24).


Não é preciso ser profundo conhecedor de Bergman para assistir ao longa dirigido pela francesa Mia Hansen-Løve (“O Que Está Por Vir” – 2016). Até porque não se trata propriamente de uma homenagem ao diretor, embora se passe na ilha, mostrando e citando ideias dele. Na verdade, trata-se mais de uma reflexão sobre o difícil processo de criação na arte e como ele pode se confundir com a própria vida do artista.

O casal americano Chris (Vicky Krieps) e Tony (Tim Roth) chega à ilha em busca de inspiração para seus próximos trabalhos. Ambos são cineastas – ele, mais velho e reconhecido. Ela, jovem em início de carreira, planejando escrever um roteiro. Pelo que se pode perceber, o relacionamento entre os dois não anda bem, mais entediado do que em crise.


Aos poucos, eles vão descobrindo o lugar que, planejado para fãs de Ingmar Bergman e turistas curiosos, é cheio de referências ao diretor que, aos 42 anos, já havia criado e dirigido 25 filmes. Estão lá a árvore de “Gritos e Sussurros” (1972), o piano da quarta mulher do cineasta, o quarto onde foi filmado “Cenas de um Casamento” (1973)...

Todos falam muito do diretor, do que ele gostava, no que acreditava. Há até um estranho safari de ônibus, com guia, visitando as locações. E uma sala de projeção onde passam os filmes dele.


“A Ilha de Bergman” não é um filme de fácil assimilação, daqueles que contam uma história com começo, meio e fim. Com roteiro da própria diretora, as cenas se arrastam entre passeios de bicicleta, diálogos e paisagens e, a certa altura, o espectador é surpreendido com cenas de “O Vestido Branco”, que está sendo escrito pela jovem Chris, um filme dentro do filme – pura metalinguagem. E, claro, em algum momento, ficção e realidade se misturam e os personagens se confundem. É interessante. Mas não prende muito e demanda certa atenção.


Além do casal, estão no filme, em participações menores, Hampus Nordensen como Hampus, uma espécie de flerte de Chris na ilha; Mia Wasikowska como a Amy, do filme dentro do filme; e Anders Danielsen Lie – ora como Joseph, ora como Anders, dependendo da obra focada no momento.

O final – os finais, melhor dizendo – são reticentes e inconclusos. Pode frustrar, mas há quem goste. E, no fundo, não deixa de ser uma forma de se lembrar das muitas obras-primas do grande Ingmar Bergman.


Ficha técnica:

Direção e roteiro: Mia Hansen-Løve

Distribuição: Pandora Filmes

Exibição: nos cinemas

Duração: 1h52

Classificação: 14 anos

Países: França, Bélgica, Alemanha, Suécia, México

Gênero: drama