03 junho 2022

“Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho” é um quebra-cabeças do crime organizado onde tudo se encaixa

Documentário de Pedro Asbeg em quatro episódios  tem excelente narração do ator Marcelo Adnet (Fotos: Canal Brasil)


Mirtes Helena Scalioni


Não seria exagero se o documentário “Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho”, de Pedro Asbeg (“Democracia em Preto e Branco” – 2014, “Geraldinos” – 2016, “América Armada” – 2018) se chamasse simplesmente “De Vila Isabel a Brasília”. De forma didática e cirúrgica, a série mostra, em quatro episódios, como foram construídas e celebradas as relações entre um inocente sorteio com nomes de animais e o crime organizado, com direito à participação da máfia italiana e dos poderes constituídos. Tudo a céu aberto, a olhos vistos, com o consentimento e a conivência de policiais, juízes, políticos, governos e imprensa.


Quando o Barão de Drummond criou o jogo do bicho em 1892, com a prosaica intenção de ajudar na manutenção de um jardim zoológico no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, não imaginava que sua criação chegasse tão longe e tivesse tanto poder 130 anos depois. É justamente esse passo a passo que a série mostra. E faz isso de um jeito tão envolvente que prende o espectador do começo ao fim, como se fosse uma obra de ficção.


Só que “Lei da Selva...” não é ficção. Os caminhos escolhidos pelo crime organizado – que muitos preferem chamar de contravenção para amenizar – passam por uma disputa sangrenta de espaço, muita violência, sangue e mortes, tudo acontecendo enquanto os donos da banca dançam, sambam e são chamados de “patronos”. 

Escolas de samba e times de futebol foram, no início, os truques que ajudaram a lavar o nome e o dinheiro dos chefões, que se tornaram celebridades ao ponto de posarem ao lado de poderosos diretores de TV e de gente graúda da imprensa e da política.

Marcelo Adnet (Divulgação)

Foi dessa forma que o Brasil conheceu e aprendeu a aplaudir nomes como Castor de Andrade, Miro, Luizinho Drummond, Capitão Guimarães, Anísio Abrahão David e outros. Foi assim também que o país tomou conhecimento de uma juíza chamada Denise Frossard que, a certa altura, quis acabar com aquela farra. Com narração acertada do humorista Marcelo Adnet, uma das grandes riquezas da série, além do roteiro bem amarrado, está na lista de entrevistados. 

Castor de Andrade (Divulgação)

Estão lá, para falar das sutilezas que foram transformando um simples jogo numa máfia, acadêmicos do porte de Marco Antônio Simas e Michel Misse, entre outros, passando pela urbanista e vereadora carioca Tainá de Paula, além de Marcelo Freixo e muitos jornalistas que viveram as transformações. Devagar, o movimento ia sendo aceito pelo Rio de Janeiro e, de certa forma, pelo Brasil. Como se tudo fosse legal.

Numa espécie de evolução natural, com o jogo do bicho vieram o samba, o futebol, o tráfico de drogas, as milícias, a política, o escritório do crime e o surgimento de nomes como Ronnie Lessa, Anderson Nóbrega, Álvaro Lins, Fabrício Queiroz e outros muito conhecidos das páginas dos jornais brasileiros.

Carnavalesco Milton Cunha (Divulgação)

E a série não poupa ninguém. Estão lá registradas a conivência de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e outros quando da construção do sambódromo e a oficialidade que se deu à criminalidade com a criação da Liesa – Liga das Escolas de Samba. 

Sem falar na expansão dos territórios dos bicheiros até o domínio de uma região do Rio de Janeiro chamada Rio das Pedras, que se formou a partir do crescimento da Barra da Tijuca. Foi lá que viveu e militou a vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em março de 2018. 


Um verdadeiro quebra-cabeças onde as peças se encaixam com justeza e perfeição. Imperdível para quem quer conhecer um pouco mais da História do Brasil que não é contada em livros oficiais, “Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho” é uma coprodução da Kromaki e Canal Brasil e está em cartaz nas plataformas Globoplay +, Now e no próprio Canal Brasil.


Ficha técnica:
Direção: Pedro Asbeg
Locução: Marcelo Adnet
Produção: Kromaki e Canal Brasil
Exibição: Globoplay + / Now / Canal Brasil
Duração: quatro episódios, com duração de 43 e 60 minutos cada
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gêneros: Documentário / Crime

31 maio 2022

"Romy, Femme Libre" mostra lado combativo de Romy Schneider, ícone do cinema europeu

Documentário foi um dos primeiros apresentados no 75ª edição do Festival de Cannes (Foto: Cannes Classic/Divulgação)


Carolina Cassese
Correspondente em Cannes


"Ao falar sobre Romy Schneider, geralmente as pessoas comentam sobre sua beleza. (...) Mas ela foi muito mais do que bonita". É esse comentário do narrador que abre o longa "Romy, Femme Libre" ("Romy, Mulher Livre"), um dos primeiros documentários a serem exibidos na 75ª edição do Festival de Cannes. “Eu queria me livrar da beleza de Romy Schneider. Por isso quis começar o documentário com a frase ‘Sempre começa com sua beleza.’ Uma vez que já colocamos isso, podemos entrar em nossa história”, explicou Lucie Cariès, que assina o filme junto com Clémentine Deroudille. 

As duas estavam presentes na pré-estreia do longa, que aconteceu em 18/5, no Palácio do Festival. Emocionada, Deroudille fez um agradecimento especial à emblemática Cinemateca Francesa, instituição que atualmente apresenta uma exposição sobre Schneider, idealizada justamente por ela. 

Lucie Cariès e Clémentine Deroudille (Photocall Cannes)

A diretora destacou que sentiu raiva ao realizar as pesquisas sobre a atriz. “Principalmente quando vi a maneira que a mídia falava sobre ela e a falsa leitura que apresentavam não apenas de Romy, mas de várias atrizes”. Para Deroudille, as narrativas veiculadas são muito focadas na aparência e apagam aspectos relevantes da trajetória das mulheres. 

Tanto o filme quanto a exposição, que fica em cartaz até 31 de julho, mostram um outro lado de Schneider, que foi um ícone do cinema europeu. Em primeiro lugar, o documentário privilegia uma visão de “Romy por ela mesma”, justamente por exibir inúmeros trechos, em sua maioria inéditos, de entrevistas da alemã que se naturalizou francesa. 


Ouvimos sobre suas angústias em tomar decisões, o tédio que a dominou depois de passar algum tempo como dona de casa, a frustração que sentiu com o cinema hollywoodiano. Fica evidente que a atriz tinha personalidade - e se arriscava com frequência.

Considerando que a proposta era se afastar do “olhar estereotipado dos outros” acerca de Schneider, o documentário acerta em mostrar primordialmente falas da própria atriz, e não de terceiros. Ao vermos ainda trechos de seus emblemáticos filmes, como "Sissi" (1955) e "As Coisas da Vida" (1979), temos a dimensão do talento da atriz e de como aqueles longas realmente marcaram uma época.

"Sissi" (Divulgação)

Inevitavelmente, a produção promove uma reflexão sobre o universo das celebridades e a pressão exercida em especial sobre as mulheres. Mesmo uma figura como Schneider, que era discreta e não fazia exatamente parte do universo hollywoodiano, foi alvo de muitos comentários acerca de seu corpo e de sua vida pessoal. 

A todo tempo, a atriz se esforçava para mostrar que poderia ser muito mais. Corria atrás de diretores, propunha projetos, topava se deslocar. “Romy era assim: uma mulher que não tinha medo de deixar lugares e homens para recomeçar sua vida em outro lugar”, conclui o narrador.

Exposição Romy Schneider (fotos Carolina Cassese)






A exposição em cartaz na Cinemateca Francesa também destaca o lado combativo da atriz. Um dos painéis mostra o seguinte pedido de Schneider para o diretor Claude Sautet: “Me faça um bom filme de mulher”. O que ela queria dizer com isso? Um filme em que as mulheres não são mais um objeto para os homens, mas sim estariam no comando da própria vida, decidiriam abortar, deixariam os homens com quem viviam porque querem ser livres. 

"Uma História Simples" (Divulgação)

O resultado de sua solicitação foi o longa "Uma História Simples", que inclusive lhe valeu o prêmio César de Melhor Atriz, em 1979. Na produção, Schneider contracenou com nomes como Sophie Daumier, Francine Bergé, Eva Darlan e Arlette Bonnard. Foi, definitivamente, um bom filme de mulher. 


 Ficha técnica:
Direção: Lucie Cariès
Roteiro: Lucie Cariès e Clémentine Deroudille
Duração: 1h31
País: França
Gênero: documentário