18 dezembro 2022

"Pinóquio", de Guillermo del Toro, é uma verdadeira obra de arte

Nova versão da história do boneco feito de maneira de pino se aproxima assim da obra original de Carlos Collodi (Fotos: Netflix)


Marcos Tadeu
Blog Narrativa Cinematográfica


A animação mais aguardada do gênio Guillermo del Toro, "Pinóquio" é um dos sucessos em cartaz na Netflix. O novo longa, diferente da versão live-action do estúdio Disney, reconstrói, de forma sensível e tocante, a história do boneco feito de maneira de pino, se aproximando assim da obra original de Carlos Collodi.

Aqui conhecemos Gepeto (voz de David Bradley), um entalhador que perdeu seu filho Carlo na guerra, em uma Itália fascista nos anos 50. O personagem se vê na solidão e começa a criar um boneco de madeira. 

O que ele não imaginava é que este ganharia vida, iniciando assim sua jornada de aceitação do boneco como filho e de busca da ressignificação do luto.


Gepeto tem uma participação incrível em toda a trama. Num primeiro momento, ele rejeita Pinóquio (voz de Gregory Mann) e quer fazer dele uma cópia fiel de seu filho. 

Passada essa fase, ele aprende a lutar e a amar Pinóquio e toda essa jornada ao longo da obra cresce aos olhos do telespectador.

No lugar da Fada Azul temos duas figuras: a Guardiã, cuja missão é cuidar das coisas perdidas ou abandonadas. É ela que concede o dom da vida a Pinóquio para poder alegrar o pai. 

Nas primeiras cenas em que o boneco fala, isso causa espanto em Gepeto, e em sua inocência, por não conhecer nada da vida, acaba destruindo vários objetos da casa. 


Na cena da igreja, por exemplo, quando Pinóquio vai atrás de seu pai, os fiéis começam a ofendê-lo, chamando-o de "demônio" e "bruxaria". A consequência disso, o governo fascista determina que Pinóquio vá para a escola e não cause problemas. 

Outra figura importante é a Morte, que faz com que Pinóquio se descubra imortal e ensina o valor das relações com as pessoas a sua volta.

O famoso Grilo Falante (voz original de Ewan McGregor,de "Doutor Sono" - 2019) agora tem nome e sobrenome, Sebastian J. Cricket. A todo o momento reafirmando que é um romancista, coube a ele narrar a história e de fato isso acontece, quando Gepeto constrói Pinóquio, ele escolhe a árvore em que Sebastian vai morar. 


Nesse longa, sim, Sebastian é uma verdadeira consciência, mesmo que muitas vezes Pinóquio aja com inocência, ele sempre dá um jeito de aparecer. Podemos acrescentar que nesta obra, Cricket interage até com Gepeto no desenvolvimento da obra.

Se no desenho clássico temos Strombolli, aqui o vilão é o Conde Volpe (voz de Christoph Waltz, de "Alita - Anjo de Combate" - 2019) , com praticamente a mesma função. Vale destacar a forma como ele consegue manipular e mostrar sua autoridade para que Pinóquio seja apenas um boneco que dá lucro para seu teatro. Volpe é extremamente ambicioso e coloca o dinheiro acima de qualquer relação.


O pano de fundo político é mostrado todo o tempo, com uma Itália sombria, governada pelo ditador Benito Mussolini. Inclusive a ordem é obedecer cegamente e o slogan que vem junto a isso é “Crer, obedecer e combater”. 

Podesta (Ron Perlman, de "O Beco do Pesadelo" - 2021), um fascista local, enxerga em Pinóquio o potencial para ser usado como soldado, justamente por ele não morrer. 


Já Candlewick, filho de Podesta, (dublado por Finn Wofhard, de "Stranger Things") é um personagem muito profundo e tem tempo suficiente para desenvolver sua honra ao pai. Assim como Pinóquio quer ser o orgulho de Gepeto, Candlewick quer o mesmo com o seu pai fascista. Mas muitas vezes terá de quebrar regras e desobedecê-lo por não concordar com a forma como o pai extermina pessoas.


Os números musicais aqui são todos muito bem coreografados e cantados. Del Toro coloca canções pontuais que, de fato, expressam o que sentem seus personagens, com destaque para Pinóquio, Gepeto e Conde Volpe, que dominam a maioria das performances.

A técnica de stop-motion prova que Del Toro está em cada quadro mostrado ao público. É um desenho tão potente em sua mensagem quanto na forma como foi feito, provando, cada vez mais, que o diretor domina qualquer gênero, inclusive animação.


Talvez um único ponto negativo seja a falta de mais camadas para a Guardiã e a Morte. Uma abordagem mais profunda da origem dessas personagens acrescentaria um algo mais à história. Mas isso não atrapalha a ótima experiência proporcionada pela produção.

"Pinóquio", por Guillermo del Toro, é um filme que fala sobre aceitar quem somos sem que tenhamos de fazer mudanças para agradar outras pessoas. É sobre entender o peso da verdade e suas consequências. Sem dúvida, uma animação que vale a pena ver e rever, para sempre descobrir novas lições.


Ficha técnica:
Direção:
Guillermo del Toro e Mark Gustafson
Produção: Pathé, Jim Henson Productions, Inferno Entertainment
Exibição: Netflix
Duração: 1h57
Classificação: 10 anos
País: EUA
Gêneros: Animação / Fantasia

15 dezembro 2022

“The White Lotus” escancara a masculinidade tóxica e a hipocrisia do sonho burguês

Série satiriza personagens, especialmente os hóspedes norte-americanos que querem viver o clichê
do "sonho italiano" (Fotos: HBO)


Carol Cassese
Blog no Zint


Matrimônios contraídos com leviandade desencadeiam consequências graves. Essa é uma das principais mensagens da ópera Madame Butterfly, elemento bastante relevante para a segunda temporada de “The White Lotus”, série da HBO Max que chegou ao fim no último domingo (11). 

Não faltam relações levianas nesses novos episódios ambientados na Sicília: podemos mencionar os casais Daphne (Meghann Fahy) e Cameron (Theo James), Tanya (Jennifer Coolidge) e Greg (Jon Gries) e ainda a relação de Dominic (Michael Imperioli) com sua ex-mulher. 


Desde o primeiro episódio, sabe-se que os corpos de vários hóspedes foram encontrados nas cercanias do luxuoso resort. Fica a pergunta: afinal de contas, quem morreu? E a clássica: quem matou?

Dessa vez, vale ressaltar, os personagens não são os mesmos dos da temporada anterior - apenas Tanya e Greg garantiram sua vaga no resort da Sicília. Qualquer semelhança com personagens da última temporada, porém, não é mera coincidência: milionários de fato parecem todos iguais. 


Também vemos hóspedes  (principalmente homens) se aventurando em esportes "da moda" e dizendo que o "mundo está ficando muito chato por conta do politicamente correto". Afinal de contas, eles não podem nem seguir explorando os outros em paz…

Nos últimos anos, foram lançadas muitas narrativas que criticam os super ricos. Alguns exemplos são o filme “Parasita”, a série “Succession” e os bem recentes longas “O Menu” e “Triângulo da Tristeza”. 

Nesses tempos em que milionários brincam de comprar plataformas e querem explorar até mesmo outros planetas, o sonho burguês de fato parece ainda mais digno de ser criticado. 


Além de mostrar as ambições desses turistas fúteis, a série nos faz conhecer um pouco (bem pouco) da realidade siciliana por meio das personagens Lucia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Gannò). Alguns podem ficar com raiva da maneira que a série estadunidense decide retratar os italianos - obviamente, com muitos estereótipos. 

Há quem aponte que as duas garotas locais são representadas como aproveitadoras, que querem a todo custo "arrancar" dinheiro dos americanos e acabam conseguindo o que querem por meio de seus corpos. 

Já vimos isso em algum lugar? Mulheres estrangeiras (em geral latinas) sendo representadas dessa forma? Provavelmente. E claro: como boa produção estadunidense falando da Itália, não poderiam faltar menções aleatórias à máfia. 


Por outro lado, outros defendem que as duas personagens italianas na verdade são exemplos empoderadores, já que elas arrancam dinheiro dos milionários. 

O conceito de empoderamento parece elástico e simplista demais nos dias de hoje, mas também é muito difícil sentir pena desses homens que enganam e exploram mulheres há décadas (em especial, Cameron e Dominic). 

De qualquer maneira, um possível alento é o fato de que “The White Lotus” satiriza praticamente todos os personagens; os hóspedes que querem viver o clichê do "sonho italiano" - sem saberem muito a respeito da cultura do país - definitivamente não são poupados.


Assim como na primeira temporada, uma das cenas finais mostra a maior parte dos personagens no aeroporto, aparentemente despreocupados e prontos para retornarem. Nem mesmo um assassinato parece perturbar a ordem daqueles que precisam fingir que está tudo bem. 

Outro ponto em comum com a temporada anterior é a frustração que sentimos pelo fato de que alguns personagens permanecem em relacionamentos tóxicos, mesmo que a viagem tenha escancarado a superficialidade dos parceiros. Esse conformismo também é característico de uma classe que vive de sucessivas simulações.

"Você mataria por beleza?", pergunta Quentin (Tom Hollander) a Tanya em uma das cenas mais emblemáticas da temporada. Tal questionamento também pode ser traduzido como: até onde você iria para manter as aparências? Alguns morreriam - outros estariam dispostos a matar. 

Trailer da 1ª Temporada 


ATENÇÃO: A parte a seguir contém spoilers

Apareceram muitas teorias acerca de diferentes pontos da série: será que um dos filhos de Daphne é do tal instrutor de academia? Cameron vai tentar tirar dinheiro de Ethan? Cameron e Ethan dormiram juntos? Harper e Cameron tiveram algo? No final, Albie vai se revelar um cara péssimo?

É interessante reparar que a série também nos mostra que às vezes as coisas são como parecem. O cara bonzinho pode ser só isso mesmo, um inocente que não esconde um plano maquiavélico. 

Já alguém que parece uma "bagunça sexy ambulante" pode acabar... Bom, bagunçando a vida de quem decide cair na tentação. Eles avisaram.


Vale notar ainda o fato de Harper e Ethan só conseguirem se reconciliar depois de (muito provavelmente) terem ficado com outras pessoas. Eles se tornam ainda mais parecidos com Daphne e Cameron: um casal mentiroso e cheio de química. 

A afinidade sexual, portanto, estaria ligada justamente a esse jogo de falsas aparências - parece que a perfeita foto de casal no Instagram esconde uma série de enganações.

No que diz respeito ao mistério principal (quem morreu e quem matou), a narrativa nos proporciona vários elementos para que possamos montar o quebra cabeça: há a ordem de mandar Portia embora, o sumiço abrupto de Greg, as cartas de tarô, a fotografia do porta-retrato. As demais subtramas, porém, nos deixam entretidos e, consequentemente, desviam a atenção da história "principal". 


Isso não é um demérito da série: considerando que há um mistério a ser desvendado, é mais do que desejável que o espectador não saiba em que focar. Já que estamos muito ocupados observando as investidas absurdas de Cameron, não necessariamente damos atenção ao desaparecimento de Greg, por exemplo.

Num diálogo com Portia, Tanya conta que sempre se comportou como uma boneca, esperando que os outros brincassem com ela. Percebemos que, mesmo num momento decisivo do último episódio, ela parece apegada a um detalhe supérfluo: "Greg estava ou não com outra mulher?". 


Mais uma vez, vale a pena lembrar da pergunta de Quentin: "Você morreria pela beleza?". Em determinado momento, é possível que nos perguntemos: Tanya realmente demora a juntar as peças do quebra cabeça ou apenas decide privilegiar a beleza?

É triste nos darmos conta de que a personagem foi realmente manipulada por vários homens ao longo de sua vida. Figuras do sexo masculino que, como bem pontuou a personagem Daphne, "acham que estão fazendo algo muito importante, mas, por serem tão competitivos, na verdade estão apenas vagando sozinhos". Como um elefante macho. Que venha o próximo destino - e mais uma porção de relações levianas. 

Trailer da 2ª Temporada


Ficha técnica:
Direção, roteiro e produção executiva: Mike White
Produção e distribuição: HBO
Exibição: HBO Max
Duração: 2 temporadas = 6 episódios cada
Classificação: 12 anos
País: EUA
Gêneros: comédia / drama