25 maio 2024

“O Aprendiz” e outros destaques de Cannes: estreias abordam urgências dos nossos tempos

Obras apresentadas no festival tratam de diversas crises
políticas atuais
 (Foto: Carolina Cassese)


Carolina Cassese


“Vamos tornar os filmes políticos de novo”. Essa foi a principal mensagem do diretor Ali Abbasi, que assina “O Aprendiz” (“The Apprentice”), na première do longa. Um dos destaques da Competição Oficial da 77ª edição de Cannes, o filme é uma tragicomédia que tematiza a ascensão de Donald Trump à fama e fortuna nas décadas de 1970 e 1980. 

O elenco é integrado por nomes como Sebastian Stan (muito elogiado pela sua interpretação do político estadunidense), Jeremy Strong (Roy Cohn, advogado de Trump) e Maria Bakalova (Ivana, ex-mulher do político).

Com roteiro assinado por Gabriel Sherman, “O Aprendiz” é centrado nos anos de formação do ex-presidente (e novamente candidato neste ano), com enfoque na difícil relação de Trump com o advogado Roy Cohn, dois homens consideravelmente ambiciosos. 

Filme "O Aprendiz" (Fotos: Divulgação)

Ao acompanharmos a história, podemos nos dar conta de que os valores de Trump são de fato compartilhados por muita gente e, ainda, se associam diretamente ao conceito de “masculinidade tóxica”. 

Homens que, sob o pretexto de serem “muito verdadeiros” (como se ter um mínimo de civilidade fosse sinônimo de “ser falso”), tratam mulheres como objetos e, ainda, precisam se mostrar como “matadores”. 

Esse termo ('killers', no original) aparece diversas vezes ao longo da história: o entorno de Trump (e principalmente o próprio protagonista) acredita firmemente que existe uma divisão entre “matadores” e “perdedores”. 

Segundo eles, o primeiro grupo é o único que merece respeito, mesmo que não se importem com o próximo (afinal de contas, os “matadores” também aniquilam uns aos outros). 


Logo nos damos conta de que, sim, homens milionários, de terno e gravata, podem ser extremamente violentos. Em diálogo com o filme, um cartaz colocado na Croisette estampava o recado: “A única minoria perigosa são os ricos” ("The only dangerous minority are the rich"). 

No discurso após a exibição do longa (bastante ovacionado por outros atores, como Cate Blanchett), Abbasi contou que foi desencorajado a realizar o filme, pois lhe disseram que ele deveria falar sobre política de uma maneira mais metafórica ou, ainda, menos personificada. 

Cate Blanchett aplaude a atriz Maria Bakalova,
do filme “O Aprendiz” (Foto Carol Cassese)

Mas Abbasi rebateu: "o que isso significaria? Mais um filme sobre as Guerras Mundiais? Não, agora é preciso falar sobre Trump - até porque contar a história dessa figura é também falar sobre o sistema capitalista e, como dissemos, sobre modelos ultrapassados (mas ainda muito presentes) de masculinidade. É também abordar a noção existente de “América”, essa terra tão idealizada (que, segundo os republicanos mais extremistas, precisa ser “great again” - again)".

Ainda sobre temas sociais, vale mencionar que Blanchett foi à première de “O Aprendiz” com um vestido que, em conjunto com o vermelho do tapete, formava as cores da bandeira da Palestina. 

Esse tema evidentemente dialoga com assuntos da política norte-americana, já que os Estados Unidos foram (e seguem sendo) um dos principais aliados de Israel. 

Não é difícil nos darmos conta, portanto, de que vivemos tempos urgentes - e o novo filme de Ali Abbasi nos ajuda a ter dimensão da gravidade da situação. 



Situação brasileira

Os processos políticos também são o fio condutor do filme “Lula”, assinado por Oliver Stone e Rob Wilson. O longa, que foi apresentado na Sessão Especial do festival, narra a ascensão, queda e retorno do líder brasileiro, com enfoque na jornada das eleições de 2022 para reconquistar a Presidência.

Parte da imprensa brasileira criticou o filme por ser muito “parcial” (a favor do atual presidente), mas, em primeiro lugar, é preciso considerar que Stone não tem a pretensão de se apresentar como um realizador “neutro”, pois seus posicionamentos políticos já são conhecidos. 

Documentário "Lula", de Oliver Stone e Rob
Wilson (Foto Ricardo Stuckert/PR)

Além disso, a história de Lula foi por muito tempo narrada por meios hegemônicos, a partir de um viés primordialmente favorável às ações de Sérgio Moro, figura que aparece muito no documentário. Vários dos ocorridos, vale lembrar, são extremamente recentes e muitos dos fatos não são inteiramente conhecidos. 

Diante do cenário, parece ingênua a defesa (ou até mesmo a crença) de que existe uma suposta “neutralidade” - afinal de contas, não é como se já soubéssemos qual é a maneira “correta” de contar essa história. 


Bastante didático, o documentário de Stone se esforça para explicar eventos complexos, como a Lava Jato e, posteriormente, a Vaza Jato. O público majoritariamente estrangeiro da sessão pareceu compreender como funcionam várias das disputas de poder no Brasil, o que é sem dúvidas um mérito de Stone. 

De qualquer maneira, existem ainda muitas possibilidades de narrar essas histórias - muito do que acontece no nosso país, como sabemos, “é coisa de filme”.

Karim Aïnouz e elenco de "Motel Destino"
 (Foto: Steffen Osburg)

Ainda falando de temas urgentes, vale mencionar o documentário “A Queda do Céu”, dirigido pelos brasileiros Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, que marcou presença na Quinzena dos Cineastas (na Competição Oficial, o Brasil foi representado pelo diretor Karim Aïnouz, com o longa "Motel Destino"). 

O filme foi inspirado na proposta do livro homônimo, assinado por Davi Kopenawa com o antropólogo Bruce Albert, que apresenta um registro da cosmologia Yanomami. 

De maneira bastante respeitosa, a obra apresentada no festival trata sobre a realidade do grupo indígena e, ainda, associa o tema com outras questões climáticas. Como sabemos, o ataque aos povos indígenas é também uma ofensiva contra o planeta.

(Foto: Pedro HG Araújo)

Diante de um cenário mundial tão turbulento (vale lembrar que conflitos como a Guerra da Ucrânia seguem ocorrendo), é esperado que novas obras abordem algumas das mazelas sociais e processos políticos contemporâneos. 

A pretensão da maior parte desses filmes não é de oferecer respostas simples, mas, principalmente, de apresentar outros olhares sobre temas tão importantes. Por vezes, o cinema nos ajuda a esquecer dos nossos problemas; em outros momentos, porém, lembrar pode ser um ato de resistência. 

23 maio 2024

Anya Taylor-Joy só quer vingança em "Furiosa: Uma Saga Mad Max"

Com boas interpretações e muita ação, longa conta a origem da guerreira vivida por Charlize Theron no longa de 2015 (Fotos: Warner Bros. Pictures)


Maristela Bretas


Um alerta inicial: aconselho assistir (ou rever) o longa "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015) para entender melhor a produção. Simplesmente porque "Furiosa: Uma Saga Mad Max" ("Furiosa: A Mad Max Saga"), que estreia nesta quinta-feira (23) vai explicar a origem da icônica personagem do título, seu ódio e desejo de vingança.

Claro que no final a ligação com o filme anterior será apresentada, mas até chegarmos lá, é bom saber quais as pontas que ficaram soltas da película exibida há 9 anos. Um grande sucesso, como outras da franquia "Mad Max", que começou em 1979 com Mel Gibson e Tina Turner no elenco.


Ninguém melhor para dar continuidade, ou melhor, para explicar como tudo começou, que o diretor George Miller. Ele é responsável também pelo longa de 2015, que arrecadou mais de US$ 380 milhões e recebeu nove estatuetas do Critics Choise Awards 2016 e outras nove indicações ao Oscar no mesmo ano.

Charlize Theron arrasou quando interpretou Furiosa, a guerreira careca que tinha um braço mecânico, usava uma pintura escura sobre os olhos e enfrentou as gangues mais perigosas do deserto para salvar mulheres escravas e sua tribo.

Anya Taylor-Joy não deixou por menos e contou bem, com pouquíssimas palavras e uma presença marcante, a origem da personagem. Os olhos da jovem expressam todo o ódio que ela carrega desde a infância, quase que justificando toda a brutalidade de seus atos. 


Ao mesmo tempo em que Furiosa fala pouco, o excesso de palavras fica por conta de Chris Hemsworth. Ele está muito bem como Dementus, o senhor da guerra e líder de uma das gangues do deserto. 

Esse talvez seja um dos melhores filmes do ator nos últimos tempos. Mesmo ele insistindo no jeito caricato e debochado que marcou sua carreira como o Thor, o Deus do Trovão, o que tira um pouco da seriedade exigida em alguns momentos de seu Dementus. 


Não sei se vai incomodar muito ao público, mas com a intenção de explicar o que levou a humanidade ao caos completo, George Miller pode ter exagerado no tempo de infância de Furiosa. Demorou muito até que a menina que sofreu nas mãos de líderes guerreiros atingisse a fase adulta.

Em "Furiosa: Uma Saga Mad Max", o público vai conhecer a história de origem da guerreira renegada, narrando sua jornada durante 15 anos até se unir a Max em "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015). 


O enredo segue a jovem Furiosa (vivida por Alyla Browne) sequestrada de seu lar pela gangue de Dementus, depois seguindo como prisioneira dele até a Cidadela, dominada pelo Immortan Joe (Lachy Hulme), outro que também faz parte do elenco do filme anterior. 

Enquanto os dois tiranos disputam o domínio, Furiosa planeja sua vingança contra aqueles que tanto mal lhe fizeram no passado e ainda tenta retornar a seu lar. A menina corajosa havia se tornado uma guerreira brutal. Anya Taylor-Joy passa tão bem esta carga emocional quanto Charlize Theron o fez em "Estrada da Fúria".


Outro destaque é a parte técnica. Seguindo a tradição da saga (quebrada apenas por "Estrada da Fúria"), o longa foi filmado nos desertos de Nova Gales do Sul, na Austrália. As imagens e o figurino são surpreendentes e o CGI foi muito bem empregado pelo diretor.

Sem falar na ótima trilha sonora entregue por Junkie XL, que deu uma nova roupagem ao sucesso de David Bowie, "The Man Who Sold The World". Para quem acompanha e curte a franquia, não deixe de conferir "Furiosa: Uma Saga Mad Max" nos cinemas, especialmente se for numa sala Imax.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: George Miller
Produção: Village Roadshow Pictures, Warner Bros. Pictures
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h28
Classificação: 12 anos
País: EUA
Gêneros: ação, ficção