06 novembro 2024

"Ainda Estou Aqui" - um filme sobre resiliência, coragem e tempos sombrios

O aguardado longa de Walter Salles entra em cartaz nos cinemas de BH e promete cativar o público
(Fotos: Alile Dara Onawale/Divulgação)


Eduardo Jr.


Estreia nesta quinta-feira (7/11), o longa "Ainda Estou Aqui", novo trabalho do diretor Walter Salles, distribuído pela Sony Pictures. Coincidência ou não, no mesmo dia da morte de Evandro Teixeira, fotojornalista que clicou momentos icônicos do combate à ditadura no Brasil, a equipe do Cinema no Escurinho foi convidada para acompanhar a pré-estreia deste que se configura como mais um resgate memorável desse triste período da história. 

O buzz em torno do filme, após a exibição no Festival de Veneza, tem tudo para se justificar em terras brasileiras. Adaptado do livro homônimo do jornalista Marcelo Rubens Paiva, o longa conta a história de Eunice Paiva, mãe de Marcelo e mulher do ex-deputado Rubens Paiva, que é levado de casa por policiais, nos anos 1970, dando início ao drama.


Aliás, o termo "drama" se aplica mais ao segundo ato da obra, que inicia com a apresentação das personagens e com um suspense, canalizado na presença dos caminhões com militares, que passam pelas ruas e provocam um incômodo na protagonista, em contraste com o cotidiano festivo do casal e seus cinco filhos. 

Walter Salles é inteligente ao mostrar Rubens Paiva (Selton Mello) com uma rotina familiar e depois sua prisão sem motivos claros. Imprime a percepção de que, na ditadura, qualquer coisa era motivo para violar direitos. 

Deixa no espectador o vazio da falta daquele personagem (talvez uma espécie de simulacro da falta que um ente desaparecido deixa nos familiares). É aí que o cotidiano solar e colorido da família começa a se transformar.  

(Foto: Lais Catalano Aranha/Divulgação)

A entrada dos milicos é digna de "O Poderoso Chefão" (1972), com sujeitos mal-intencionados emergindo das sombras. A fotografia faz questão de escurecer a tela. A maldade do regime consegue causar impacto no espectador sem apelar para arroubos cinematográficos ou de emoção. E nem precisa. 

A câmera nos faz enxergar a Eunice criada por Fernanda Torres, uma escolha visual que se mostra acertadíssima! A protagonista começa uma mulher de classe média alta, muda para dona de casa sem privilégios, se reinventa como advogada, e comunica tudo com uma atuação e expressões impecáveis, entregando melancolia e força até nos gestos mais sutis. 

Além de Fernanda, todo o elenco parece ter entendido que menos é mais. O filme traz atuações precisas e bem sintonizadas entre atores que dão vida aos personagens na 1ª fase e os que assumem após a passagem de tempo. 


Ponto positivo também para a excelente trilha sonora, com músicas da época muito condizentes com a mensagem e com o momento (de ontem e o atual, embora o filme seja também sobre memória). 

Uma dessas pautas da atualidade já era parte da biografia de Eunice. Após a tragédia familiar, ela voltou a estudar, se formou em Direito e passou a atuar em prol das causas indígenas (que voltaram aos noticiários, recentemente) e violações dos Direitos Humanos. 

Se assim podemos dizer, uma das vitórias foi a dela própria, ao obter a certidão de óbito do marido. Eunice recebe o documento como sempre fez, sorrindo. Por ordem dela, não era permitido à família Paiva chorar ou sofrer frente às câmeras, pois essa seria uma vitória dos assassinos que destruíram tantas outras famílias brasileiras. 


Eunice morreu em dezembro de 2018, com 86 anos, em decorrência do Mal de Alzheimer. Está representada nessa fase final por Fernanda Montenegro. E com a mesma força expressiva que a filha deu à personagem no início e meio do longa. 

No final deste filme, de tamanho refinamento técnico que mal se percebe o passar das duas horas de exibição, o espectador observa algo que pode ser interpretado como o que essas famílias experimentam: a busca de uma completude que nunca mais existirá. O que fica, é memória. Filme imperdível! 

"Ainda Estou Aqui" é a produção brasileira escolhida para integrar a lista de possíveis indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. A prévia dos finalistas sai no dia 17 de dezembro e a lista com os cinco escolhidos será divulgada no dia 17 de janeiro. 


Ficha técnica:
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega
Produção: Mact Productions, VideoFilmes, Arte France, RT Features
Distribuição: Sony Pictures
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h15
Classificação: 14 anos
País: Brasil
Gêneros: drama, suspense

05 novembro 2024

"Megalópolis", de Coppola - um filme audacioso sobre poder e utopia

Adam Driver e Nathalie Emmanuel protagonizam a mais nova obra do diretor, que aborda temas sociais e políticos (Fotos: Divulgação)


Marcos Tadeu
Texto cedido pelo blog Jornalista de Cinema


Considerado um dos projetos mais audaciosos da história do cinema e do diretor Francis Ford Coppola, está em cartaz nos cinemas "Megalópolis". O filme aborda temas sociais e políticos como só o diretor e também roteirista da produção, um mestre em retratar complexidades humanas, poderia alcançar.

Distribuído pela 02 Play Filmes, o longa é estrelado por Adam Driver, Giancarlo Esposito, Aubrey Plaza, Forest Whitaker, Nathalie Emmanuel, Shia LaBeouf, Jon Voight, Laurence Fishburne, entre outros nomes conhecidos do cinema. 


Na história, conhecemos César Catilina (Driver), um arquiteto visionário que propõe melhorias radicais para sua cidade com a ajuda de uma misteriosa descoberta, chamada Megalon. Contra ele está o prefeito Cícero (Esposito), um líder conservador que busca manter as tradições e frear a modernização. 

O pano de fundo é Nova Roma, uma metrópole que mistura elementos da civilização antiga com aspectos contemporâneos, refletindo a luta entre progresso e tradição. O filme também enfatiza o papel da arte, mostrando o que sem ela uma sociedade perde a alma.

O design de produção, liderado por Beth Mickle e Bradley Rubin, se destaca ao mostrar a divisão socioeconômica da cidade. O contraste entre áreas prósperas e desfavorecidas dá vida à distopia que se desenrola.


Coppola traz questionamentos importantes: como gastamos nosso tempo? E se pudéssemos pará-lo, o que faríamos? A busca por progresso e os dilemas éticos e políticos que o acompanham são discutidos de forma corajosa.  No centro da narrativa, a tensão entre César e Cícero é palpável. 

Adam Driver dá vida a um idealista obstinado por melhorias coletivas, enquanto Giancarlo Esposito representa a política tradicional, que resiste às mudanças. A dinâmica entre os personagens revela a eterna batalha entre inovação e conservadorismo.


Nathalie Emmanuel ganha destaque como Lucia, filha do prefeito. Sua personagem evolui de uma figura aparentemente mimada para uma voz ativa na disputa ideológica, unindo-se a César e confrontando o pai. Forest Whitaker, como Julius, também desempenha um papel intermediário, contribuindo para o debate político central.

Coppola enriquece o filme com simbolismos — como a Justiça cega em movimento — que pontuam suas críticas à sociedade moderna. A obra tem um tom shakespeariano, com temas familiares e ambições que remetem a Hamlet. 


As atuações, embora teatrais e caricatas em alguns momentos, contribuem para essa atmosfera. Até mesmo a franquia "Star Wars" é lembrada. Há uma referência rápida do personagem de Adam Driver, que interpretou Kylo Ren, segurando um objeto como se fosse um sabre de luz.

No entanto, "Megalópolis" peca em profundidade de personagens. A preocupação de Coppola em explorar subtramas políticas e sociais deixa de lado o desenvolvimento dos dramas pessoais. 

Os próprios personagens César e Cícero não interagem com as massas, evidenciando como líderes políticos muitas vezes priorizam ideais sobre o coletivo.


O filme faz uso de citações de figuras históricas como Voltaire e Marco Aurélio, ampliando a reflexão sobre poder e liderança. Ele explora como a sabotagem e a manipulação da verdade são usadas para minar o progresso e como o extremismo pode surgir em meio ao descontentamento popular.

Do próprio bolso  

Francis Ford Coppola financiou pessoalmente parte do projeto, investindo cerca de US$ 140 milhões, saídos da venda de sua famosa vinícola. Foram décadas de reescritas e adiamentos, que começaram em 1977. 

A visão autoral do diretor, rejeitada por estúdios por ser considerada arriscada e pouco comercial, foi levada adiante graças à sua determinação em manter o controle criativo.


Essa ousadia reflete o compromisso de Coppola com sua arte. Ele não buscava agradar ao mercado, mas sim concretizar uma visão artística que transcendesse as convenções cinematográficas.

"Megalópolis" é um exemplo raro de cinema autoral que desafia a lógica comercial da indústria. Comparável a "Duna: Parte Dois" (2023) em sua abordagem política e distópica, Coppola vai além ao explorar temas de maneira crua e direta. 

A escolha de Nova Roma como cenário (numa alusão do que seria Nova York como um novo império) reforça as temáticas de ambição e poder, em uma narrativa que, mesmo com suas falhas, promete ser lembrada por sua audácia e relevância.


Ficha técnica:
Direção e roteiro:
Francis Ford Coppola
Produção: American Zoetrope
Distribuição: O2 Play Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h18
Classificação: 12 anos
País: EUA
Gêneros: drama, ficção