17 março 2021

"Nomadland" - Seres humanos em trânsito

Frances McDormand interpreta Fern, uma mulher que após perder tudo, descobre pelas estradas um novo mundo de grandes histórias (Fotos: Searchlight Pictures/Divulgação


Carolina Cassese


“Eu trabalhei numa empresa durante 20 anos. Meu amigo Bill trabalhava para a mesma empresa. E… ele teve insuficiência hepática. Uma semana antes de se aposentar. O RH ligou para ele no hospital e disse: ‘Vamos falar sobre a sua aposentadoria’. Ele morreu 10 dias depois. Nunca teve a chance de usar o veleiro que ele comprou e ficou em sua garagem. E ele perdeu tudo. Então ele me disse antes de morrer: ‘só não perca tempo, garota. Não perca tempo’. Então me aposentei assim que pude. Não quero que meu veleiro esteja na garagem quando eu morrer. E não está. Meu veleiro está aqui no deserto”.


Em torno de uma fogueira, um grupo compartilha histórias de vida. Ouvimos de alguém que desenvolveu estresse pós-traumático após a Guerra do Vietnã e de uma pessoa que perdeu a mãe e o pai num curto intervalo de tempo. Em seguida, é a vez da mulher parafraseada acima. O que todos têm em comum é justamente o fato de terem decidido tirar seus respectivos veleiros da garagem. 
 

Baseado no livro homônimo de Jessica Bruder, o longa "Nomadland" é centrado na mudança de vida de Fern (Frances McDormand), uma mulher que, após ter a vida gravemente afetada pela crise econômica e perder tudo, decide morar numa van, se submetendo a curtos contratos de trabalho para poder conseguir alguma renda. A produção foi escrita, dirigida e editada por Chloé Zhao, jovem chinesa radicada nos Estados Unidos.
 

Logo nas primeiras tomadas, nos deparamos com paisagens de tirar o fôlego. O espectador se torna um companheiro de viagem de Fern: encaramos vastas locações e, em determinados momentos, sentimos um vazio - que não é necessariamente incômodo, mas sim ligado ao ato de contemplar.


Na obra, é possível observar diversos cruzamentos entre ficção e documentário. O segundo gênero se configura especialmente a partir da (ótima) escolha da diretora em escalar verdadeiros nômades para o elenco, que interpretam eles mesmos. Os diálogos, portanto, soam bastante genuínos, e, dessa maneira, podemos entender verdadeiramente a razão deles serem itinerantes. Nossa porta de entrada para esse mundo é Fern, uma mulher forte e bastante real, brilhantemente interpretada por McDormand.
 

O abandono é outro elemento importante a ser observado. Essas pessoas foram abandonadas pela sociedade, pelo Estado e, assim, passaram a ocupar espaços que também foram deixados. A partir de "Nomadland", descobrimos um Estados Unidos vasto, ainda pouco explorado, com riquezas inesperadas para oferecer. A solidariedade é uma delas.

Depois da crise

A precarização do trabalho é outro pano de fundo importante para a compreensão da realidade apresentada. Como defende a pesquisadora Vera Follain em seu livro "A Ficção equilibrista: narrativa, cotidiano e político", o mundo do trabalho voltou a ser narrado no cinema a partir das crises do neoliberalismo. "Nomadland" definitivamente se encaixa nesse grupo de filmes, especialmente porque boa parte do grupo retratado decidiu mudar de vida após a crise de 2008, responsável por desestruturar a vida de inúmeras famílias estadunidenses.
 

Em determinado momento do filme, o representante Bob Wells afirma: “Nós não apenas aceitamos a tirania do dólar, do mercado. Nós as abraçamos. Nós alegremente vestimos a sela da tirania do dólar e vivemos toda a nossa vida assim. Pensem como uma analogia a um burro de carga. Um burro de carga disposto a trabalhar até a morte e então ser colocado para fora. E é isso que acontece com muitos de nós. Se a sociedade quer nos abandonar, mandando a gente, burros de carga, pra fora, nós temos que nos unir e cuidar uns dos outros”.


O filme de Zhao deixa claro que isso é exatamente o que o grupo faz: cuidam uns dos outros. Todos seguem suas respectivas jornadas individualmente, o que não significa, de forma alguma, que estejam sozinhos. Cada um, dentro de sua própria jornada, encontra mãos estendidas no caminho. É um paradoxo pensar que essas pessoas que escolhem viver mais solitárias talvez estejam menos inseridas na lógica do hiperindividualismo do que quem vive em sociedade.
 
 
Ao ser perguntada por uma antiga aluna se ela é “homeless” (sem lar), Fern responde: “não sou sem lar, apenas sem casa. Não é mesma coisa, certo?”. Ao terminarmos o longa de Zhao, sabemos a resposta: não, não é a mesma coisa. "Nomadland" tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros em 15 de abril.

Premiações

A produção já conquistou 20 premiações, entre elas Melhor Filme e Melhor Diretor no Globo de Ouro e Critic´s Choice Award de 2021. Além de seis indicações ao Oscar deste ano para os prêmios de Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Direção (Chloé Zhao), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Edição.

 


Ficha técnica:
Direção e roteiro:
Chloé Zhao
Produção: Fox Searchlight Pictures
Distribuição: Walt Disney Pictures
Exibição: 15 de abril nos cinemas
Duração: 1h48
Classificação: 12 anos
País: EUA
Gênero: Drama

11 março 2021

"O Último Jogo" traz o lado cômico da rivalidade entre Brasil e Argentina

A história se passa entre as cidades vizinhas de Belezura e Guarpa (Fotos: Michel Gomes/Pandora Filmes)

Wallace Graciano

A rivalidade entre Brasil e Argentina sempre esteve intrínseca no imaginário dos dois lados dos países sul-americanos. De outrora aliados políticos, os coirmãos tiveram, ao longo dos tempos, ânimos que foram se aflorando pelas disputas comuns a competidores antagônicos, acirrando-se conforme o futebol tornou-se proeminente na cultura popular dos dois lados das Cataratas do Iguaçu. 

E é justamente essa temática que envolve “O Último Jogo”, que teve estreia adiada nos cinemas para o mês de maio, mostrando como levaram a campo a disputa entre cada um dos lados da fronteira.


A história se passa em Belezura, uma cidade que tem como grande atividade econômica a venda de móveis. Porém, com uma crise que assolava e ameaçava o futuro dos moradores locais, precisavam migrar para outros mercados. Antes de tudo, porém, não poderiam deixar de desafiar os arquirrivais de Guarpa, os vizinhos portenhos, em uma partida de futebol.


O que não esperavam é que a derrota viria e ela foi muito amarga, tanto que o treinador foi cobrado por torcedores e um narrador um tanto quanto caricato (isso tudo contando com uma bela sequência de imagens carregadas de humor). Porém, o dono do boné canarinho promete uma revanche daqui uma semana. E é aí que a trama se desenvolve.


O hiato entre os dois domingos é marcado por uma série de acontecimentos que ficam secundários graças à rivalidade latejante que envolve a cidade. Da malandragem aos dramas por anseios e ambições em xeque, o roteiro de Roberto Studart nos traz um filme cômico, com várias camadas, que circundam como a paixão pelo esporte bretão pode ser o veneno e o remédio para qualquer problema.


O grande destaque fica por conta da trilha sonora composta por Julian Carando, carregada de instrumentos típicos da identidade nacional. Ela rouba a ambientação até mesmo frente às boas tomadas e diálogos cheios de bom humor. “O Último Jogo” é o primeiro longa metragem do diretor Roberto Studart, responsável pelos documentários "Prá Lá do Mundo" (2012) e “Mad Dogs” (2016).

Ou seja, vista sua camisa, pegue sua bebida favorita e vá curtir as quase duas horas de “O Último Jogo”. As brigas, mentiras, traições e belas jogadas serão uma diversão garantida para você.


Ficha técnica:
Direção e roteiro:
Roberto Studart
Produção: Truque Produtora
Distribuição: Pandora Filmes
Duração: 1h39
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gêneros: Comédia / Esporte